domingo, 26 de julho de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – oralidade e origens do Congo; um jovem guerreiro rompe com a família para se tornar Nitnu Wene em outras paragens e se dispõe a sangrento e violento ritual; atormentado, o primeiro mani recorre ao Mani Vunda para se reconciliar com os mortos; Mongo wa Kaila, o “monte da partilha” e a divisão nem sempre pacífica das terras entre os chefes dos clãs; no centro de Mpemba surge a capital; antiga tradição rompida pela intromissão dos cristãos portugueses

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/07/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore_25.html antes de ler esta postagem:

Não há registros documentais tradicionais e escritos sobre as origens do Congo pelo simples fato de as primeiras sociedades locais não possuírem escrita... Devemos à tradição oral a conservação de narrativas que dão conta dos primórdios da gente que viria a constituir o povo obediente ao manicongo.
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Inicialmente ocorreu a ocupação por famílias oriundas de outras regiões... Elas se tornaram maiores ao incorporarem nativos e se reuniram em clãs que demandaram uma organização política mais definida, sobretudo porque tinham de estabelecer áreas de assentamento e fronteiras. Desse modo buscavam evitar conflitos com os vizinhos.
Como foi salientado anteriormente, graças à tradição oral pode-se vislumbrar uma narrativa que, além de possível e adequada, traz à tona “o significado simbólico dos fatos que descreve transformados em mito”.
De acordo com a tradição, o filho de um dos mais importantes clãs (o Nimi Lukeni) das proximidades do rio Zaire decidiu ampliar sua liderança política por terras mais ao sul e, para isso, rompeu seus laços de parentesco com a comunidade inicial... Dessa maneira conquistou autonomia para prosseguir em busca de seguidores que legitimassem a condição de chefe (nitnu), ser reconhecido como “mwene” (algo como a dignidade da soberania) e, assim, poderia adotar o título de Nitnu Wene, sendo reconhecido e obedecido por todos.
Contudo, deixar os vínculos familiares e romper definitivamente com os que era ligado sanguineamente não era tão simples... Isso só se concretizava quando o guerreiro postulante tirava a vida de um ente que o vinculava aos antepassados. Como o costume era matrilinear, acabou matando uma de suas tias que estava grávida... Ainda de acordo com a tradição, uma tia era como que “segunda mãe” dos filhos do clã.
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O jovem concretizou satisfatoriamente o ritual de sua libertação em relação à família e logo chegaria à desejada condição de Nitnu Wene... Todavia conta-se que o processo o tornou atormentado em relação à violência praticada contra uma parente tão significativa. De acordo com o estudioso da história do Congo, monsenhor Jean Cuvelier, a personagem tornou-se afetada por “um estado de confusão mental” que se define como “laukidi”, que entre os africanos significa “comportamento alienado”.
Essa condição o fez curvar-se perante as forças religiosas/espirituais... Tanto é que recorreu ao mais antigo dos anciãos, liderança da província de Mbata, Nsaku ne Vunda, que era quem fazia a intermediação entre os vivos e os mortos. Como resultado, por suas limitações, Nitnu Wene declinou de um poder que poderíamos considerar “total”... Desde então os rituais de “consagração e legitimação de poder dos manis do Congo” passaram a contar necessariamente com participação do Mani Vunda.
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De qualquer maneira, Nitnu Wene pôde prosseguir em seu projeto de dar início a uma nova linhagem em outras paragens. De fato, vários clãs resolveram segui-lo até chegarem a uma localidade no planalto do Mpemba conhecida como Mongo wa Kaila (Monte da Partilha), onde deram início à partilha das terras...
Em boa parte das ocasiões os chefes chegavam a acordos e a instalação de sua gente se dava de modo pacífico. Este foi o caso do Vale do Nkise, em que os grupamentos que disputavam Npangu e Mbata acertaram politicamente suas diferenças... Mas aconteceram disputas mais radicais que envolveram o uso da força, como as áreas como o Soyo, Mbamba e Nsundi.
Ao Nitnu Wene restaram as terras do Mpemba, que deram origem à capital do Congo e, de acordo com os registros de Tinhorão, foi chamada por diferentes nomes no decorrer de sua História:

                   “Kongo dia Wene (Congo do fundador), Nkumba a Ngudi, Mbanza Congo dia Ntotila (cidade do chefe maior, ou ntotila nitnu né Kongo) e, finalmente, com o advento dos cristãos, Kongo dia Ngunga, o Congo do Sino, após a construção da igreja de São Salvador.

Pelo visto, tudo indica que Nzinga a Nkuwu (o manicongo que a partir do batismo cristão tornou-se D. João do Congo) tenha sido o sexto mani da linhagem desde as origens “míticas”. Ele teria morrido em 1505 ou 1506... Nas postagens anteriores vimos que no fim da vida buscou reconciliar-se com os costumes de sua gente, mas não teve êxito na transmissão aos muxicongos (do mesmo modo que chegara ao poder). E isso, como sabemos, ocorreu porque seu filho cristianizado saiu-se vencedor do conflito com Mpangu a Kitina.
O D. Afonso do Congo passou a seguir as orientações e costumes conforme lhes eram transmitidos pelos aliados portugueses.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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