Talvez
seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/03/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg.html antes de ler esta
postagem:
Foi no Fioretto
della Bibbia que Menocchio leu
que os anjos foram as primeiras criaturas criadas “da mais nobre matéria”...
Pecaram por soberba e por isso perderam seus “lugares especiais” junto a
Deus... Também leu neste livro que toda natureza é submissa a Deus, do mesmo
modo que o martelo e a bigorna são submissos ao ferreiro que exercita o seu
ofício e produz os mais diversos objetos (quem “faz a coisa é o ferreiro”), mas
o moleiro não levou isso em conta; materialista como era não admitia a
“presença de um Deus criador”... Podia admitir que os seres humanos fossem imagem
e semelhança de Deus; que neles há ar, fogo, terra e água... Assim, esses
elementos são Deus, do mesmo modo que tudo o que há de belo no mundo é Deus.
Em seu cotidiano seguia
propagando entre seus conterrâneos que Deus era mesmo uma “traição da Escritura,
que o inventou para nos enganar”... “Deus não é nada além de um pequeno sopro e
tudo o mais o que o homem imagina”... Nem Deus nem o Espírito Santo “se
mostram”, então Menocchio raciocinava junto aos seus que as entidades estavam
mais para invencionices... Porém durante o processo não foi isso o que garantiu...
Perante as autoridades respondeu com indignação que ninguém poderia dizer que
ele proferira que o Espírito Santo não existe... E ainda: garantia que sua
“maior fé neste mundo” estava justamente no Espírito Santo “e na palavra do
altíssimo Deus que ilumina o mundo todo”...
Qual seria o verdadeiro Menocchio? Aquele do cotidiano de Montereale,
feroz crítico de Deus e das coisas da religião, ou o que se dizia devoto
perante os inquisidores? Para muitos, seus depoimentos de crença ardorosa se
explicam pelo seu medo e desejo de livrar-se da condenação do tribunal... Isso
à parte, é certo que Menocchio não pode ser definido como um tipo prudente...
Tanto é que não escondia seu pensamento em relação à “mortalidade da alma”, além
disso, negava a divindade de Cristo.
Ao que tudo indica,
Menocchio reservava aos seus conterrâneos de Montereale uma “versão
simplificada” de seu pensamento. Ao passo que às autoridades inquisitoriais
apresentava uma “versão mais complexa”. Não podemos esquecer que ele mesmo
dizia que se tivesse oportunidade de falar com o papa, rei ou príncipe, não
perderia a ocasião e, se depois o prendessem (e o matassem), não se
incomodaria.
Mas sobravam as
incoerências das contradições entre as “duas versões”... Se entendermos que as
palavras de Menocchio perante as autoridades sintetizavam seu “real
pensamento”, temos de refletir sobre a possibilidade (ainda que remota, como
propõe Ginzburg) de o moleiro ter conhecido (pelo menos indiretamente) o De Trinitatis erroribus, do médico
espanhol Servet... Essa obra cheia de termos filosóficos e teológicos bastante
complicados foi introduzida na Itália por volta da metade do século XVI por
Giorgio Filaletto (conhecido como Turca ou Turchetto).
Em Trinitatis erroribus temos a ideia da
humanidade de Cristo, condição acrescida de divindade graças ao Espírito
Santo... Os depoimentos de Menocchio durante o primeiro interrogatório
revelaram que, para ele, havia dúvidas se Cristo era Deus, porque podia ser
apenas um bom homem, um profeta entre os demais homens... Dessa forma, Cristo
seria apenas um ser humano como nós todos... Embora ponderasse que “Deus
mandara o Espírito Santo escolhê-lo como filho”.
Inicialmente Servet
procurou apresentar definições sobre o Espírito Santo retiradas da própria
Escritura... Assim, somos levados a pensar sobre Ele de modos distintos... Em
alguns trechos Espírito Santo é o próprio Deus; em outros é entendido como um
anjo, “espírito do homem”; “natureza divina de alma”; “impulso da mente”; “o
hálito”... Alerta que há diferenças entre sopro e espírito...
Conhecendo
um pouco mais do conteúdo de Trinitatis
erroribus entenderemos os juízos formulados pelo moleiro.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/03/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_27.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto