Antes da narrativa propriamente dita, Pânfilo fez reverência ao criador de tudo o que existe... Dessa forma esperava que, em tempos tão difíceis, todos fixassem em Deus a esperança... Esperava mesmo que o grupo se lembrasse que deve louvores ao criador. E prosseguiu dizendo que, por bondade, Deus no concede a graça e a força para suportarmos os sofrimentos e cansaços da existência temporal. Completou afirmando que durante a vida os mortais se entregam aos prazeres e dedicam-se aos impulsos materiais... Mas, uma vez que se voltam a Deus, ainda que tenham se desviado dos caminhos do Bem, iludidos por forças opostas à Majestade de Deus, podem experimentar a eternidade e a beatitude porque Deus atende aos que Lhe enviam sinceras preces...
Sua novela se inicia destacando a figura de certo Musciatto Franzesi, famoso e bem sucedido comerciante da França. Empossado cavaleiro, deveria acompanhar o irmão do rei, o senhor Carlos Senterra, a uma audiência solicitada pelo papa Bonifácio... Percebendo que alguns de seus negócios necessitavam de ajustes, resolveu delegar as resoluções a diferentes pessoas... Quase tudo foi prontamente solucionado, mas restava o caso de cobranças relativas a empréstimos que fizera a borgonheses... Levando em consideração a reputação de briguentos e desleais dos de Borgonha, não sabia de ninguém que fosse mau o bastante para encarar aqueles devedores.

Musciatto considerou, então, que este Ciappelletto fosse mesmo a pessoa mais preparada para fazer a cobrança junto aos borgonheses. Chamou-o e comunicou-lhe o seu intento com a promessa de ceder-lhe favores e boa paga... O notário percebeu que a partida do comerciante representava uma drástica alteração no panorama local e que os negócios diminuiriam... Isso significava também redução das oportunidades para incorrer em atos imorais. E foi isso o que pesou para que ele aceitasse o “emprego”... De posse da procuração e de cartas favoráveis do rei, partiu para Borgonha.
Praticamente desconhecido na região, executou sua tarefa mostrando-se bondoso para com todos... Instalou-se em casa de dois irmãos florentinos que, como tinham respeito pelo senhor Musciatto, estenderam a consideração ao inquilino. O tempo passou e o já idoso Ciappelletto adoeceu, sendo muito bem tratado pelos dois irmãos, que providenciaram médicos e criados... Os médicos viam que o velho adoecido estava mesmo muito mal, e que seu estado era consequência de vida muito desregrada.
Os dois irmãos pensaram sobre como deveriam proceder e se preocuparam com o fato de, mandando-o embora, caírem em descrédito junto à comunidade, pois seriam censurados por desalojarem um velho (doente e à beira da morte) contra o qual ninguém apresentava nenhuma desaprovação... Ao mesmo tempo os dois sabiam, pelos relatos médicos, que Ciappelletto, dono de biografia repleta de abusos, não teria condições de confessar-se e, sendo assim, não receberia nenhum sacramento da Igreja... Sabiam que, sem a absolvição religiosa, ele seria lançado às valas comuns... Certamente a situação provocaria uma reação violenta... As pessoas se revoltariam e gritariam impropérios contra os dois, que seriam reconhecidos como “inimigos da Igreja”... Sua casa seria invadida, seus pertences seriam roubados... Seriam implacavelmente “linchados como cães”... Ao refletirem sobre a morte que se aproximava de Ciappelletto, os dois irmãos vislumbravam as piores perspectivas possíveis.
O velho doente ouviu a conversa de seu senhorio e entendeu a confusão em que estavam metidos e, como que querendo remediar a situação, chamou-os para explicar-lhes um plano.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/03/decamerao-de-giovanni-boccaccio_4.html
Leia: Decamerão. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto