quarta-feira, 20 de março de 2013

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – mais sobre o “Fioretto della Bibbia”; explicações materialistas de Menocchio a respeito de Deus

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/01/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_13.html antes de ler esta postagem:

Vimos que ao mesmo tempo em que Menocchio se inspirava na leitura de Fioretto della Bibbia (e também na Escritura), ia apropriando-se de conceitos mais próximos do erudito e construía uma interpretação própria... Contrariava os ensinamentos pregados pelo texto e seguia as ideias “formuladas por sua mente”.
O Fioretto era leitura fácil... Usava de metáforas para ensinar, daí sua característica didática... Mas Menocchio invertia muito do que lia... Seu “universo linguístico” era de fidelidade às palavras... Sua interpretação de textos era “ao pé da letra”... Assim, entendia Deus como “pai de todos os homens”. “Todos somos filhos de Deus, da mesma natureza que a do que foi crucificado”. Sua conclusão era simples, dado que todos são filhos de Deus, Ele quer bem a todos (cristãos, turcos, heréticos, judeus...) e por isso todos se salvarão indistintamente... É claro, reconhecia que muitos rejeitam Deus, mas ainda assim pertencem a Ele. O fato de blasfemarem contra Ele não significa que cometem pecado... Isso só pode fazer mal aos que blasfemam... O que conta, de fato, é se as atitudes prejudicam ao próximo... Quer dizer, novamente vem à tona aquela ideia do filho que blasfema contra o pai e é perdoado e, no entanto, se quebra a cabeça de um de seus irmãos, o pai não pode perdoá-lo (caso em que o “pecador” tem de “pagar por sua atitude agressiva ao próximo”).
A ideia de que devemos amar mais ao nosso próximo do que a Deus é literal... Para o moleiro, Deus está afastado dos viventes. Ele é a autoridade identificada como “santíssima majestade” (algumas vezes identificada por ele como distinta de Deus, outras como sendo o próprio Deus, e ainda “espírito de Deus”)... Ainda explicando Deus, Menocchio faz uma analogia que O relaciona a um “grande capitão”, que teria enviado o seu filho a este mundo como embaixador... Deus é entendido por ele também como “homem de bem”, um senhor de poder... Segundo ele mesmo, não deveriam estranhar as suas ideias em relação às suas opiniões confusas (ele mesmo admitia isso) sobre a crucificação de Jesus... “Se Ele era Deus eterno não podia se deixar prender e crucificar”... Um senhor (de poder) não procederia deste modo!
O conceito formado a respeito de “senhor”, além do poder que todos reverenciam, traz em seu bojo a característica do “não trabalhar” porque há quem trabalhe por ele... Além de pai, Deus é um patrão, um proprietário de terras que não precisa “sujar as mãos trabalhando”... Seus feitores é que cuidam disso excepcionalmente... Os anjos “que trabalham para o Espírito Santo” contribuíram, por exemplo, “para a criação da terra, das árvores, dos animais, dos homens, dos peixes e de todas as outras criaturas”... Tudo isso está de acordo com as afirmações de Menocchio a respeito do poder de Deus... O processado seguia afirmando que todos concordam que Ele fez tudo o que existe, mas em sua opinião não haveria nenhum absurdo em aceitar que Ele tenha contado com a colaboração dos anjos... De outra forma, argumentava, tudo seria bem mais demorado... O poder de Deus, segundo Menocchio, consiste no “operar através dos trabalhadores”.
Menocchio admitia que o papa fosse representante de Deus, um agente que perdoa os pecados das pessoas... Sendo assim, julgava que isso é bom... É como se Deus nos perdoasse, então as indulgências seriam boas. Mas ele defendia que, além do papa, Deus possui outros agentes... O Espírito Santo é um deles, um “feitor”... E o Espírito “elegeu” quatro capitães (“agentes entre os anjos criados”)... Os homens se fizeram a partir da “vontade de Deus e de seus ministros”... O Espírito Santo participa da obra dos ministros, então tem parte na criação dos homens.
Os inquisidores perguntaram a Menocchio se Deus “criou, produziu, alguma criatura”... O moleiro disse que Ele “providenciou que fosse dada a vontade para que todas as coisas fossem feitas”... Sua concepção limitava-se ao que vivenciava como moleiro e carpinteiro (que tem conhecimento sobre “como fazer”) que, possuindo as ferramentas adequadas, vontade de fazer e o material necessário, definitivamente, fazia...
Para Menocchio, nem Deus nem o seu capataz (o Espírito Santo) fizeram nada, já que quem “pôs mãos à obra na criação do mundo foram os anjos” (“feitores”; “trabalhadores”). Não por acaso os inquisidores quiseram ouvir de Menocchio sobre como teriam surgido esses entes... E ouviram do interrogado que os anjos foram “produzidos pela natureza da mais perfeita substância do mundo, assim como os vermes nascem do queijo”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/03/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_23.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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