Os irmãos florentinos, também devido aos seus interesses, contribuíram com o velho Ciappelletto para que o seu plano funcionasse a contento... Vimos que ele revelou-se também um mestre na arte de encenar, passar-se por piedoso e santo homem, para obter a absolvição religiosa.
Questionado se tivera algum comportamento motivado pela ira, o velho Ciappelletto confessou ter pecado muitas vezes ao se irritar e esbravejar contra aqueles que não seguem os mandamentos de Deus, principalmente os mais jovens que preferem as tavernas às igrejas... O frade garantiu que aquela se tratava de uma “boa ira”, e disse que não sabia que penitência poderia indicar a tal atitude... Então lhe perguntou sobre homicídios ou falsidades que tivesse promovido em prejuízo de outras pessoas... Mostrando indignação, Ciappelletto refutou completamente o que ouviu... Não, nem em pensamento ele ousaria pecar daquela forma. Explicou que, quando encontrava alguém de tão horrendas capacidades, não era outra a sua reação a não ser a de se afastar e ordenar que o delinquente se convertesse a Deus.

É claro que mais essa atitude de Ciappelletto foi aprovada pelo frade... Às demais perguntas que este lhe fez respondia com o mesmo cinismo... E foi dessa forma que, de homem desregrado e pecador que realmente era, foi considerado puro (ilibado, um cristão exemplar) pelo seu último “último confessor”... Mas Ciappelletto não se deu por satisfeito e, querendo mostrar-se contrito (ainda que carregasse “pequenos deslizes contra Deus e a Igreja”), disse ter falhado ao solicitar a um criado que varresse a casa sem levar em consideração que já se tratava de momento de “guardar o domingo santo”... Também por isso foi absolvido pelo frade, que se referiu ao episódio como “pequena falta”... Ciappelletto o corrigiu e voltou a lamentar não ter observado o dia sagrado em que “Nosso Senhor ressuscitou da morte”... O mentiroso disse ainda que em certa ocasião cuspiu sem querer numa igreja... Sobre isso, o frade informou que os religiosos procedem cotidianamente da mesma forma... Fazendo aparência de transtornado, Ciappelletto advertiu que não aceitava aquela atitude, pois o “santo templo” é lugar que merece permanecer o mais limpo de todos.
Depois de várias observações similares, Ciappelletto começou a chorar... Evidentemente estava encenando, mas tão bem o fazia que o religioso se preocupou... O bondoso frade quis saber o que estava acontecendo. Quando imaginamos que o repertório de mentiras dele havia se encerrado, ele saiu-se com mais uma de dramaticidade ímpar.
O frade antecipou que, tendo ouvido a sua exemplar contrição, não acreditava que ele pudesse dizer algo que fosse ofensivo ao Criador... Chorando copiosamente, o falsário manifestou tratar-se de “pobre coitado”, cujo pecado era tão grande que não imaginava obter o perdão de Deus por intermédio do bondoso frade... O religioso não conseguia entender como o outro não cessava o seu pranto, que transmitia a ideia de que era o mais desgraçado dos homens... Então o frade ficou ansioso por ouvir mais essa confissão.
Finalmente Ciappelletto disse que, quando era ainda muito pequeno, blasfemou contra a própria mãe. Parou de falar para chorar mais... Recebeu o consolo do frade, que disse que as pessoas blasfemam diariamente contra Deus e, ainda assim, Ele as perdoa... Falou que mesmo que Ciappelletto fosse um dos que crucificaram Cristo, seria absolvido de todos os seus pecados... Garantia isso com base na contrição por ele manifestada.
Ciappelletto caprichou no tom emotivo para revelar que se sentia aliviado pela intercessão do bondoso frade... O religioso acreditou em tudo o que ouviu. Quem não acreditaria naquele velho, fantasiado em piedoso, à beira da morte? Absolveu-o e, mais que isso, ofereceu o lugar que os frades tinham por sagrado (na igreja) para sepultá-lo.
Então o plano do velhaco funcionou... Aceitou prontamente a oferta feita pelo frade... Solicitou a Eucaristia e a Extrema-Unção... Muito satisfeito, o frade confirmou que assim o faria.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/03/decamerao-de-giovanni-boccaccio_5.html
Leia: Decamerão. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto