quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – Juca enfureceu-se ao perceber que o patrão lhe roubara os desenhos do projeto; Maria enlouquece e culpa o próprio diabo; o patrão salafrário reaparece para levar os últimos papéis; seis anos de prisão para o operário acusado de assalto


Juca voltou para onde estava a Maria... Ele trouxe o canudo destampado e os papéis em desarranjo. Ele gritou com ela querendo saber onde estavam os desenhos. Maria respondeu que só podiam estar no canudo, então o operário soltou gritos irados denunciando que haviam sido roubados. O trabalho que poderia trazer alguma esperança para a vida deles havia sido surrupiado e o Juca entendeu que o ladrão só podia ter sido o próprio patrão.
Aos gritos de “miserável” e “canalha”, Juca deixou a casa às carreiras na intenção de alcançar o empresário salafrário. Maria pegou o canudo e constatou que não havia nenhum desenho em seu interior... No mesmo instante uma de suas vizinhas entrou na casa, atraída que foi pela gritaria.
(...)
A vizinha perguntou o que estava acontecendo... Maria permaneceu paralisada e com uma fisionomia assustada. Sem conseguir transmitir uma resposta lógica, começou a balbuciar palavras que pareciam desconexas: “Foi o Juca!... Os desenhos... O palácio... Os vestidos de seda”...
Obviamente a vizinha não conseguiu entender qualquer sentido e perguntou se Maria estava bem... Ela respondeu que não tinha nada, mas logo assumiu uma feição de louca e disparou que “foi aquele homem!”, ele só podia ser o próprio diabo!
Maria não sabia explicar e não conseguia raciocinar sobre o que tinha acabado de vivenciar, sobre o golpe do qual havia sido vítima e, ao mesmo tempo, cúmplice por ter prejudicado o marido. Sua vontade era gritar e ela disse isso mesmo à vizinha. Logo repetiu as palavras desconexas (aquele homem; o palácio; os vestidos; as joias) e, assim que a vizinha percebeu a gravidade do caso e começou a chamar a sua atenção, passou a delirar afirmando que a pobre casa era o bonito palácio... A colega não estava vendo a escadaria em mármore?
A outra passou a segurá-la numa tentava de despertá-la da divagação... Maria protestou exigindo que largasse o seu vestido de seda. Quis saber se a vizinha estava com inveja. Tudo o que a outra conseguiu dizer foi um “coitada”. Naquele mesmo momento o patrão vigarista entrou novamente na casa. Maria apontou em sua direção e disse que ele era o diabo que havia lhe dado o palácio onde vivia. O tipo sorriu e confirmou ao mesmo tempo em que lhe subtraia os demais papéis. Em tom de chiste pedia que ela colocasse sua roupa “mais rica”, pois iriam ao teatro. Completamente fora de si, Maria quis saber se devia colocar o vestido que tinha pedras preciosas. Mais uma vez o salafrário assentiu.
Logo que Maria saiu, a vizinha perguntou ao cavalheiro sobre o que a teria deixado maluca daquele jeito... O tipo explicou que a coitada havia sido vítima de um marido possesso... A mulher espantou-se, pois não conseguia imaginar o Juca causando algum mal à esposa.
O patrão vigarista confirmou que o Juca teve um ataque de fúria e que tentara assaltá-lo no momento mesmo em que entrava no carro. Mas se dera mal e estava preso. Seria processado como ladrão! Disse isso e se retirou pela última vez da casa operária. A vizinha ficou só... Lamentou a má sorte de Juca e olhou para a porta por onde a Maria havia passado. Retirou-se da casa, pois percebeu que nada podia fazer.
Maria voltou à cena... Trazia uma toalha de mesa amarrada à cintura. Vários outros trapos estavam amarrados à toalha e eram arrastados pelo chão. À cabeça levava um chapéu masculino adornado com uma pena de espanador. Completamente desvairada, saiu de casa para a rua sem objetivo definido ou noção da realidade.
(...)
A encenação da tragédia passada há vinte e cinco anos terminou... O cômodo da pobre casa se escureceu e logo notamos que a frente da igreja onde estavam o velho mendigo e o Barata volta a se iluminar.
Barata ouviu com atenção a narrativa e perguntou se a mulher havia mesmo enlouquecido. O companheiro respondeu que ela passou muitos anos num hospício, convicta de que era a mulher mais rica e importante do mundo. Ele (que era o Juca daquela história) acabara preso como assaltante e condenado a seis anos.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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