sexta-feira, 29 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – Muyart, defensor da tortura como forma eficiente de se obter confissões; petição de Dupaty agitou a opinião pública e provocou oposição declarada do tribunal parisiense; Condorcet e sua publicação a favor de Dupaty; decreto real abolindo a tortura anterior às execuções; simpatia, como reflexo do amor divino e mentalidade de valorização dos corpos; ideias de Benjamin Rush contrárias aos castigos públicos

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_27.html antes de ler esta postagem:

Em 1780, Muyart havia escrito o seu tratado sobre a legislação referente às punições judiciais aplicadas na França. Em postagens anteriores, vimos que ele considerava válidas as confissões firmadas após sessões de tortura. Portanto se colocava contra a corrente de advogados e pensadores reformadores, todavia evitava o debate direto ao mesmo tempo que afirmava que seus oponentes eram “polemistas”, e garantia que “a força do passado” estava ao seu lado.
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De tal modo a petição de Dupaty inflamou os ânimos dos que já se sensibilizavam com os sofrimentos dos acusados injustamente que logo a opinião pública colocou-se declaradamente a favor dos processados e contra o sistema judiciário...
Isso alarmou o “Parlament de Paris”, que decidiu queimar publicamente o texto. O tribunal questionou o gênero textual adotado no documento (o estilo romanesco) e contra-atacou afirmando que a petição transmitia a ideia de que o advogado assumia a condição de “porta-voz” de toda nação e que, em nome dela, formulava os juízos catastróficos... É como se toda humanidade fizesse parte “de uma terra desgrenhada”, lhe mostrasse “as feridas” e se colocasse ao seu lado “tremendo e estendendo-lhe as mãos”.
Apesar dessa ofensiva, não houve como conter o avanço das ideias reformadoras... O Marquês de Condorcet (Jean Caritat), que viria a se tornar “o defensor mais coerente dos direitos humanos” ao tempo da Revolução, redigiu panfletos nos quais defendia Dupaty (fins de 1786). De modo simplificado, lançou novos ataques ao modo como as autoridades jurídicas desprezavam o ser humano e ao modo como violavam a “lei natural”. Como se sabe, dois anos depois o próprio rei Luís XVI tomou atitudes mais afinadas com as reivindicações e aboliu (provisoriamente) “a tortura antes da execução para obter nomes de cúmplices”. O livro cita trechos do decreto real e suas providências:

                   “reafirmar a inocência (...) remover do castigo qualquer excesso de severidade (...e) punir os malfeitores com toda a moderação que a humanidade exige”.

A campanha cresceu de tal forma que, em 1789, quando se vislumbrava a reunião dos Estados Gerais, “a correção dos abusos no código criminal” tornou-se uma das questões mais citadas nas “listas de queixas” propostas para a assembleia.
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“A Invenção dos Direitos Humanos” não nos deixa perder de vista que toda polêmica em torno da tortura judicial e das demandas por uma reforma nos códigos se relacionam à empatia pelos sofredores e pelos “novos significados atribuídos ao corpo”... Tanto os ossos quebrados de Calas quanto a gangrena de Lardoise (aquele acusado defendido por Dupaty) provocaram a inquietação nas mentes que exigiam dignidade no trato dos corpos.
O breve panfleto de Benjamin Rush (1787) já apontava “os defeitos do castigo público”, demonstrando que tal procedimento não estava de acordo com as noções de indivíduo autônomo e solidário. Rush era médico e até entendia a sanha dos magistrados tradicionais pela aplicação de castigos aos condenados, provocando-lhes dores corporais. Mas de sua parte preferia punições mais relacionadas a “trabalho, vigilância, solidão e silêncio”, pois isso atendia às prerrogativas “da individualidade e potencial utilidade do criminoso”.
Evidentemente Rush era dos que se colocavam contrários aos castigos em público, pois isso destruía a simpatia (ou empatia), algo tão precioso e que ele considerava “a vice-regente da benevolência em nosso mundo”.
A “simpatia” lembra que temos de reconhecer que os demais possuem interioridade e direitos que devem ser respeitados. A preocupação de Rush indica que essa percepção vinha fundamentando uma nova moralidade e sinalizava “a centelha do divino” na vida e relações humanas. Não por acaso, o doutor relacionava a sensibilidade ao senso de justiça, um “reflexo condicionado para o bem moral”. Assim, não podia aceitar os castigos públicos proporcionados pela Lei, pois eles travavam a simpatia, o “amor universal” e a percepção de que também os criminosos possuem “corpos e almas semelhantes” aos nossos.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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