quarta-feira, 20 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – o debate entre as ideias de Beccaria e a tradicional defesa da tortura judicial prosseguiu; a partir da tradução de André Morellet e de muitas reedições a obra de Beccaria tornou-se baluarte contra a tortura

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_14.html antes de ler esta postagem:

Médicos e cientistas colocaram-se contra a frenologia e outras crenças sobre a relação entre a aparência das pessoas e sua índole ou alma. Basicamente argumentava-se que a dissimulação podia ser usada por qualquer criminoso e, de outra forma, um inocente podia ser levado a confessar deslizes não cometidos...
Ainda a respeito da polêmica sobre os sinais que as aparências podiam revelar, sobretudo quando os corpos fossem submetidos a torturas, Beccaria argumentava que ela perdia qualquer sentido na medida em que os que a suportassem “escapariam aos julgamentos negativos” ao passo que os mais fracos seriam vistos como culpados. Para Beccaria, a dor não servia para sentenciar os processados judicialmente, ela não era de modo algum “o teste da verdade, como se a verdade residisse nos músculos e fibras de um desgraçado sob tortura”. Assim, os sofrimentos dos que sofrem a dor da tortura não têm qualquer vínculo com “sentimento moral”.
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Como a “questão” (aplicação da tortura) sofrida por Jean Callas havia ocorrido de modo privado, distante dos olhos de muitos que pretendiam observá-la, os vários advogados que se dispuseram a escrever petições e argumentações em sua defesa não puderam discorrer muito a respeito de sua reação.
Beccaria não aprovava de modo algum a tortura às escondidas porque, em seu entendimento, o processado não podia contar com a “proteção pública” mesmo antes que qualquer juízo de culpa recaísse sobre ele. A tortura privada impossibilitava ainda qualquer consideração contrária à punição.
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É bem verdade que na França dos anos seguintes a 1750, os juízes já não se sentiam tão seguros em relação à eficácia da tortura para a obtenção de confissões... As penas de morte deixaram de ser aplicadas com frequência e, em vez disso, os magistrados decretavam o estrangulamento do condenado antes de ser lançado à fogueira ou à roda. Os tribunais regionais de apelação interferiram em vários processos para barrar torturas (as chamadas “torturas preparatórias) que ocorriam antes dos julgamentos (como se deu com Calas em Toulouse).
A tortura não foi completamente rejeitada pelos juízes. E pode se dizer que não concordariam com Beccaria no tocante ao seu desprezo pelo “caráter religioso” da tortura. O italiano se opunha tacitamente à ideia de que a tortura “limpava os condenados da infâmia” e, para ele, essa crença só podia ser explicada como “fruto da religião”. Seria o caso de se questionar sobre como a tortura podia “lavar a mancha” se ela mesma causava grave infâmia para o supliciado.
Um dos que defendiam a aplicação da tortura era Muyart de Vouglans que, portanto, se colocava contra as ideias de Beccaria. Para Vouglans, diante da condenação de “milhões de criminosos” punidos corretamente, a condenação de um inocente apenas fazia empalidecer. Devia-se considerar, ainda segundo o crítico de Beccaria, que as “milhões de condenações” jamais ocorreriam sem a aplicação da tortura.
Seguindo essa linha de raciocínio, muitos concordavam que a tortura permanecia um expediente útil e justificável “pela antiguidade e universalidade de seu emprego”. Para Muyart, as poucas exceções “só provavam a regra”, que podia ser investigada na História tanto da França quanto do Sacro Império Romano. Então, para ele, os princípios defendidos por Beccaria contradiziam “a lei canônica, a lei civil, a lei internacional e a ‘experiência de todos os séculos’”.
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Não se pode dizer que Beccaria tenha destacado suas ideias sobre a tortura a partir da “nascente linguagem dos direitos”. Ele não fez isso, mas muitos de seus leitores perceberam a potencial conexão.
Um deles foi André Morellet, um abade francês que se ocupou de traduzir a obra do italiano. Ao modificar a ordem apresentada por Beccaria, acabou relacionando sua temática à dos “direitos do homem”. De acordo com Lynn Hunt, o abade “tirou a única referência de Beccaria a seu objetivo de apoiar os ‘direitos do homem’ do final do capítulo 11 na edição italiana original de 1764, passando-a para a introdução francesa de 1766”.
Com essa pequena transposição, passou-se a entender que a defesa dos “direitos do homem” era o maior objetivo da obra de Beccaria, para o qual, de modo algum o sofrimento individual promovido pelas torturas poderia ser justificado.
Consta que a alteração editorial promovida por Morellet permaneceu em muitas outras traduções publicadas posteriormente, inclusive em edições italianas. Sem dúvida essas traduções e reedições da obra de Beccaria se tornaram gigantesca avalanche de ataques aos procedimentos de tortura.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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