O fato é que houve época em que a exibição do sofrimento dos executados era associada à necessidade de tornar pública a vingança do Estado contra a ousadia do criminoso ao afrontá-lo... Isso nem quer dizer que a infração dos condenados tinha a ver com crime político. Importava mostrar que a ordem não podia ser de nenhum modo perturbada; e que, qualquer que fosse o crime, ele era sempre entendido como afronta ao poder estabelecido. Como sabemos, a religião legitimava o espetáculo de horrores das execuções judiciais, mas aos poucos o componente religioso foi questionado para dar lugar à tolerância e à ideia de reparações mais humanas.
Beccaria foi defensor de um código sem a influência da religião e baseado no contrato, como preconizava Rousseau. Ele afirmava que as leis “devem ser convenções entre os homens num estado de liberdade”, defendia castigos proporcionais aos crimes e menos cruéis. Todavia sustentava que o fato de as punições serem expostas ao público favorecia a “transparência da lei”.
(...)
A mentalidade de valorização das individualidades e o afastamento das
fundamentações religiosas nos processos levaram a um entendimento de que as
dores (que funcionavam como ameaça a toda comunidade) impostas aos condenados
só a eles pertenciam... Por outro lado, repudiou-se os autos de sacrifício para
“o bem de todos ou para um propósito religioso mais elevado”.
É
como Henry Dagge, teórico britânico do Direito afirmava: “o bem da sociedade é
promovido com mais sucesso pelo respeito aos indivíduos”... A partir desse
ponto de vista, as punições deviam ser entendidas como “pagamento de dívida” e
não como “expiação de um pecado”...
De um corpo mutilado
não se pode esperar nenhuma quitação de dívida. Isso é óbvio e nos leva a
refletir sobre o “lugar das dores impostas aos supliciados no Antigo Regime”: elas
eram um “símbolo da reparação”. As mudanças provocadas pelos princípios iluministas
levaram os teóricos a encará-las como “obstáculos a qualquer quitação
significativa”. O livro destaca que em várias colônias inglesas na América do
Norte, juízes passaram a determinar o pagamento de multas nos casos de ataques
às propriedades... Antes impunham chibatadas aos condenados.
A sociedade deixou de
ver nas cruéis execuções públicas a reafirmação da ordem e dos princípios morais
que se tinham por corretos... Os castigos passaram a ser vistos como um ataque
abominável... E mais: a dor só podia brutalizar ainda mais o indivíduo punido e
os que assistiam ao seu flagelo. De modo algum a antiga concepção possibilitava
qualquer arrependimento.
Para
ilustrar a crítica ao modelo antigo de punições públicas, o livro destaca
fragmentos de Willian Eden, estadista e jurista britânico, a respeito da exposição
pública dos cadáveres dos condenados:
“Deixamo-nos apodrecer como
espantalhos nas sebes, e nossas forcas estão amontoadas de carcaças humanas.
Alguma dúvida de que uma familiaridade forçada com esses objetos possa ter
qualquer outro efeito que não seja o de embotar os sentimentos e destruir os preconceitos
benevolentes das pessoas?”
Lynn Hunt destaca uma
afirmação de Benjamin Rush (médico, educador e signatário da Declaração de
Independência dos Estados Unidos), que responde satisfatoriamente ao
questionamento apresentado anteriormente. Em 1787, Rush garantiu que “A reforma
de um criminoso jamais pode ser levada a efeito por um castigo público”.
Então está claro que os reformadores da legislação penal se posicionaram
contra o abuso dos castigos públicos... Sentenciavam que eles não produziam
qualquer sensação de vergonha ou resultavam em mudanças de procedimentos dos
imputados por crimes. Para os especialistas, a exposição da barbaridade extremada
contra os condenados não levava o público a refutar sinceramente os maus
exemplos dos supliciados.
Rush
concordava com Beccaria ao se opor à pena de morte, mas, diferentemente deste,
defendia que os castigos impostos aos condenados fossem longe das vistas da
comunidade... Além disso, para ele, as punições deviam ter a função de
reabilitar o criminoso, possibilitando a sua reintegração à sociedade e à “tão
cara” liberdade pessoal.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_14.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto