Em várias sociedades europeias aconteceu, principalmente entre os mais estudados, uma sensibilização das pessoas em torno dos sofrimentos impostos aos supliciados pela tortura judicial. Isso ocorreu entre o início da década de 1760 e os anos 1780...
No começo, muitos advogados redigiram petições denunciando as injustiças contra Calas. Assim como Voltaire, eles não se colocavam incisivamente contra a tortura determinada pela justiça ou especificamente pelo suplício da roda. Focavam na questão do fanatismo e estavam convencidos de que a intolerância religiosa havia levado as pessoas comuns e os juízes de Toulouse a punirem o velho Jean Calas... De um modo geral, as petições se prolongavam em detalhes acerca da tortura e da morte do condenado, mas não colocavam em questão a legitimidade dos instrumentos de punição.
Podemos dizer que as petições que se tornaram públicas na defesa de Calas levavam em consideração que a dor que a tortura provocava, um “cruel castigo”, não havia sido suficiente para vencê-lo... De outro modo, podemos dizer que, para os advogados que se debruçaram sobre o caso e saíram em defesa do pobre homem, ele conseguiu provar que era inocente exatamente porque suportou a dor.
É como dizia Alexandre-Jérôme Loiseau de Mauléon que, em sua tese sobre a inocência do calvinista, afirmava que ele “suportou a questão (a tortura) com resignação heroica que só pertence à inocência”. Em um trecho de sua defesa destaca as “comoventes palavras de Calas”:
“Morro inocente; Jesus Cristo, a própria inocência, desejou fervorosamente morrer com um sofrimento ainda mais cruel. Deus pune em mim o pecado daquele infeliz (referia-se ao filho) que se matou. (...) Deus é justo, e adoro os seus castigos”.
Para Loiseau, essa “perseverança majestosa” do torturado alterou completamente os sentimentos dos que acompanhavam o seu caso. Conforme o supliciado repetia que era inocente ao mesmo tempo em que era submetido aos cruéis tormentos, todo o povo se compadecia e se arrependia dos juízos que haviam antecipado contra ele. Os golpes da vara de ferro contra seus ossos soavam “no fundo das almas” de todos que acompanhavam o suplício, “torrentes de lágrimas se derramavam” dos olhos das pessoas...
No dizer do próprio Loiseau, “lágrimas demasiado tardias”.
(...)
Acontece
que, para muitos, a tortura continuava a ter sua eficácia judicial na medida em
que forçava o indivíduo a confessar por mais que sua consciência resistisse.
Lynn Hunt esclarece que havia uma tradição na Europa sobre a possibilidade de
se conhecer o caráter das pessoas a partir de certas marcas ou sinais corpóreos
(uma “tradição fisionômica”).
Diversas obras
publicadas desde o final século XVI e durante o XVII tratavam da “Metoposcopia”
e da ciência da “interpretação do caráter ou sorte” das pessoas a partir da
interpretação de “linhas, rugas ou manchas na face”. “A Invenção dos Direitos
Humanos” cita o título de uma delas, cujo autor era Richard Saunders (1653):
“Fisionomia e Quiromancia, metocospia, as proporções simétricas e os sinais do
corpo plenamente e acuradamente explicados, com suas significações naturais
previsíveis tanto para os homens como para as mulheres”.
Como se vê, muitas
pessoas acreditavam mesmo que os sinais visíveis dos corpos eram reveladores do
interior de cada um. Até o final do século XVIII e começo do XIX ainda podiam
se encontrar defensores dessas ideias, principalmente entre os adeptos da “frenologia”
(que teciam considerações acerca do grau de inteligência a partir do formato e
protuberâncias do crânio).
Mas,
aos poucos, médicos e cientistas passaram a refutar mais incisivamente esses
conceitos e a partir de 1750 se colocaram terminantemente contra essa crença infundada.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_20.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto