Como vimos na postagem anterior, o doutor Rush entendia os seres humanos de modo bem diferente do formulado por Muyart de Vouglans.
Rush era um crítico ferrenho dos castigos públicos, já que os espetáculos de horrores “travavam a simpatia” dos que os presenciavam... Podemos dizer que, para ele, o bom convívio entre os humanos e o “bem moral” só podiam derivar da empatia nutrida por princípios cristãos e, desse modo, a exposição dos suplícios em tudo contrariava o que pretende a “benevolência divina”.
Muyart insistia que as pessoas não conseguem controlar suas paixões, e que isso era uma consequência do “pecado original”... Assim, sua defesa dos castigos e tortura impostos aos que cometiam crimes se baseava nesse princípio religioso. Ele entendia que a razão deve controlar as paixões que podem levar a atos de rebeldia... Nem todos possuem o autocontrole, daí a importância da religião e as imposições da própria sociedade. Seu argumento pretende sustentar que os crimes acontecem quando o indivíduo perde a razão (se deixa dominar por paixões, desejos e medos), e quando isso acontece o Estado não pode deixar de atuar com rigor.
A honra e justiça são sufocadas quando os desejos (de possuir o que não se tem e o que é inalcançável) e o medo (de perder as posses) se exacerbam... Por isso, ainda no entendimento de Muyart, as sociedades compreendem que Deus as submetem a reis investidos de suprema autoridade e poder “sobre a vida dos homens”. Como se sabe, esse poder era delegado a juízes e os monarcas guardavam para eles mesmos o direito de perdoar. Essa visão tradicional que fundamentava os códigos de leis sobre os crimes arrogava que apenas dessa forma se faria prevalecer as virtudes sobre os desvios comportamentais dos vícios. Para Muyart, havia eficiência nesse modelo e assim “o mal inerente da humanidade” podia ser combatido.
(...)
Evidentemente os que
pretendiam reformar a Justiça contrariavam os princípios filosóficos e
políticos tradicionais... Como vimos na postagem anterior, notadamente a partir
das ideias de Rush, propunham um modelo baseado no “cultivo de qualidades
humanas inerentemente boas” através da educação e práticas de valorização da
pessoa.
Pensadores
iluministas trataram da questão das paixões tão problematizadas por Muyart e
outros tradicionalistas... Eles tomaram por base as ideias do neurologista
Antônio Damásio, que entendia que “as emoções são cruciais para o raciocínio e
a consciência, e não hostis a eles”.
Damásio admitia que
Espinosa (pensador e filósofo holandês do século anterior) era a sua principal
influência intelectual, todavia as reflexões mais positivas em torno das
paixões só passaram a ser admitidas pelos círculos mais esclarecidos da Europa
durante o século XVIII. Para muitos, as ideias advindas do pensamento de Espinosa
levavam ao materialismo, já que concluía-se que “a alma é apenas matéria, por
isso não há alma”... Portanto, refutavam tais ensinamentos, ainda mais porque
endossavam o ateísmo na medida em que relacionava Deus à natureza e, assim
sendo, “não poderia haver Deus”.
Bem aos poucos os
mais cultos começaram a aceitar um “materialismo implícito ou mitigado” que não
provocava maiores comprometimentos em relação às discussões “teológicas sobre a
alma”... No máximo permitiam-se às reflexões sobre a matéria e sua capacidade
de “pensar e sentir”. Daí as conclusões a respeito da condição de igualdade
entre os seres humanos em sua “organização física e mental” e, além disso, as
noções a respeito da experiência e da educação como fatores primordiais (em vez
do nascimento) na explicação a respeito das diferenças entre grupos humanos de
origens diferentes.
(...)
Somos tentados a pensar que a maioria dos que frequentavam os grupos
mais esclarecidos aderisse à filosofia “de viés materialista”... Mas não foi
isso o que ocorreu. Apesar de bem poucos se declararem afinados com o
“espinosismo”, as ideias de Muyart sobre as paixões se tornaram menos aceitas e
sofreram várias críticas.
Podemos dizer que as emoções deixaram de ser vistas como prejudiciais à
razão... O livro cita afirmação de Charles Bonnet (fisiologista suíço) que
define a nova ideia sobre as paixões: “o único Motor do Ser Sensível e dos
Seres Inteligentes”. E como passaram a ser vistas como boas, as paixões deviam
ser trabalhadas pelo processo de educação e, dessa maneira, contribuir para o “aperfeiçoamento
da humanidade”.
Em
consonância com as novas ideias sobre os processos judiciais, a humanidade passava
a ser entendida como “aperfeiçoável”, ao mesmo tempo em que as teses sobre os
vínculos entre paixões humanas e os vícios e maldades eram refutadas.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/12/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_20.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto