quarta-feira, 6 de novembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – Muyart de Vouglans contra Beccaria; defesa da violência nas execuções penais como forma de restaurar a ordem política, religiosa e da comunidade; dor do condenado como ritual de reparação e intimidação geral; atos formais de penitência na praça da Greve e imprevistos

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/11/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_5.html antes de ler esta postagem:

Pierre-François Muyart de Vouglans redigiu e publicou suas considerações (1767) contra os princípios defendidos por Beccaria. De modo simplificado, podemos dizer que ele refutou “os sentimentos inefáveis do coração”, que o outro entendia como fundamental para o estabelecimento da justiça. Muyart insistia que se orgulhava de ser tão sensível quanto as demais pessoas, no entanto admitia que não se alinhava com os “modernos criminalistas”... Dizia não ter sentido o “estremecimento suave” possibilitado por disposição de nervos (fibras, terminações nervosas) semelhante a deles. Para ele, o sistema construído por Beccaria tinha por base “as ruínas de todo o senso comum”.
Muyart criticou a cômoda condição do racionalismo de seu desafeto que, no conforto de seu gabinete, comentou severamente “as leis de todas as nações” e, dessa maneira, pretendia fazer com que os demais pensadores do Direito chegassem à conclusão de que não possuíam “pensamento exato ou sólido” sobre a temática. Para Muyart, a experiência e a prática em relação aos processos judiciais valia mais do que o raciocínio inspirado na “lei positiva”.
A prática ensinava que as indisciplinas deviam ser punidas com máximo rigor... Nada de sensibilidade! Muyart insistia que as pessoas são modeladas por paixões e geralmente o temperamento domina os sentimentos “contaminados por elas”. Daí concluir-se que os infratores “devem ser julgados como são” e “não como deveriam ser”. Apenas a justiça punitiva, que vinga, poderia inspirar o temor que inibe os temperamentos propensos ao crime.
(...)
A partir do ponto de vista tradicional (notadamente o de Muyart) pode-se entender melhor o degradante espetáculo das execuções públicas. A gente comum sentia-se atraída aos eventos pelo horror a que se podia assistir. Então os defensores da crueldade consideravam que elas contribuíam para advertir a gente comum em relação aos maus procedimentos. Multidões inteiras “enxergavam” a dor do condenado e compreendiam a “majestade esmagadora da lei, do Estado e, em última instância, de Deus”.
Exatamente por pensar dessa maneira, Muyart não podia aceitar as ideias de Beccaria, que sustentava que era preciso dispensar sensibilidade à dor sofrida pelo condenado. Os tradicionalistas concordavam com a questão da sensibilidade apenas na medida em que ela levava as pessoas a reconhecerem que os atos criminosos eram rigorosamente punidos. Os castigos tinham de ser os mais violentos porque isso provocava dor e levava os que assistiam a refletirem sobre a necessidade da disciplina.
Qualquer infração era sempre vista como um atentado à organização política, aos ensinamentos religiosos e à sociedade. A dor provocada ao condenado não devia ser entendida como crueldade à pessoa... Em vez disso (de acordo com os tradicionalistas como Muyart), o sofrimento era uma “reparação” ao mal feito à comunidade. Para se restaurar a “ordem política, moral e religiosa”, corpos eram esquartejados ou queimados.
(...)
A execução podia ser entendida, então, como um sacrifício que restaurava “a integridade da comunidade e a ordem do Estado”...
Na França, em muitos casos, esse processo contava ainda com um “ato formal de penitência” em que “o criminoso condenado carregava uma tocha de fogo e parava na frente de uma igreja para pedir perdão a caminho do cadafalso”. Para termos uma ideia, as execuções na capital ocorriam na mesma praça em que se celebravam os sempre festivos casamentos e nascimentos de membros da realeza (a Place de Greve). Mas diferentemente das ocasiões verdadeiramente festivas, as execuções de criminosos eram imprevisíveis e muitos incidentes podiam ocorrer, pois muitos compareciam bêbados e dispostos a todo tipo de devassidão.
Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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