Na manhã seguinte, Tertuliano pôs-se a refletir sobre o que dissera ao Senso Comum a respeito de não mais usar a barba postiça e andar de “rosto descoberto”... A verdade é que inconscientemente talvez estivesse desafiando ao “original”... Pelo visto a novela não se encerraria tão cedo.
Ele havia sido incisivo ao garantir que entre ele e o Antônio Claro nada mais havia a ser tratado... Era por isso que não mais se encontrariam... Isso podia ser “ilustrado” pela metáfora do ter se retirado “da mesa de jogo”.
Todavia as falas e postura do professor deixam escapar algumas contradições. Tanto é verdade que logo após o desjejum seguiu à papelaria onde adquiriu uma pequena caixa para depositar a barba postiça e enviá-la ao Antônio Claro.
Mas é evidente que aquilo não era um presente... Obviamente o ator possuía acessórios para figurinos diversos... Os dois estavam mais para desafetos! Jamais usaria o objeto enviado por Tertuliano.
(...)
Ao receber o pacote, o tipo reconheceria imediatamente... Sem entrar em
detalhes, diria à esposa que aquilo se tratava de uma ofensa, um desafio.
Helena estranharia e diria que ele não possui nenhum inimigo...
De pouco adiantaria dizer que entre os atores há
muitos melindres e invejas... Nunca é demais recordar que sua carreira estava
em ascensão e isso podia provocar intrigas entre os mais insuspeitos colegas.
(...)
Sem entender o que levaria alguém a enviar uma barba postiça ao marido,
Helena voltou à carga... Então Antônio respondeu que aquilo havia sido usado
pelo seu “igual” no dia em que se encontraram... Disse que entendera
perfeitamente o motivo do disfarce, pois alguém do povoado podia confundi-lo
com ele mesmo e a confusão se estabeleceria.
Helena quis saber o que o marido faria com o “presente”... Antônio respondeu
que poderia devolvê-lo com um bilhete “curto e grosso”... Mas acrescentou que
isso só alimentaria uma troca de correspondências que não lhe interessava. Sua
carreira não podia correr esse tipo de risco.
A mulher disse que no lugar do marido colocava fogo naquilo... Antônio
argumentou que não se tratava de um caso de morte... Depois brincou que ela não
ficaria bem de barba (dado que ela deu a ideia “colocando-se em seu lugar”).
Helena não gostou da brincadeira e passou a lamentar o caso, um transtorno
para a sua cabeça. Apesar de não poder acreditar na “total semelhança”, passava
mal só de pensar que na cidade havia um tipo idêntico ao esposo.
O estado de espírito de
Helena se explica pelo fato de ela ter se assustado muito com o depoimento de
Antônio Claro após o encontro com o Tertuliano... Ele garantiu que em tudo eram
semelhantes, até mesmo impressões digitais e documentos de identificação...
(...)
O ator pediu que ela
mantivesse a calma... Sugeriu um tranquilizante.
Helena respondeu que
estava tomando remédios desde o telefonema do tipo misterioso... Antônio disse
que não reparara... Ela emendou que normalmente ele não a reparava muito... Mas
o que ele podia fazer se a outra ingeria os remédios às escondidas?
A mulher pediu desculpa e concordou que aquilo passaria... Antônio
reforçou a ideia dizendo que chegaria o tempo em que não se lembrariam de mais
nada.
Mas alguma coisa tinha de
ser feita com os “pelos repugnantes”... Essa foi a sentença proferida por
Helena.
Antônio respondeu que guardaria a barba postiça junto
com o bigode que havia usado em “Quem Porfia Mata Caça”... Helena quis saber
que interesse havia em guardar um acessório que havia sido usado em outra
cara...
Um tanto desorientado, Antônio disse que “a cara é a mesma”.
Helena desaprovou... Ele só
podia querer que ela enlouquecesse com aquele tipo de afirmação. Será que pretendia
fazer daquilo uma espécie de relíquia? A mulher não tinha como definir o
raciocínio porque a primeira reação do esposo ao abrir o pacote havia sido de
repulsa ao mesmo tempo em que dizia que aquilo vinha de “mão inimiga”.
Antônio Claro quis corrigi-la, mas ela insistiu
que seus gestos e expressão deram a entender que era o que ele pensava (que se
tratava de uma agressão de algum inimigo).
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/11/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_7.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto