Maria da Paz saiu do carro tão logo foi chamada pelo “outro Tertuliano” (Antônio Claro).
Como sabemos, a casa era isolada e não possuía vizinhos nas proximidades...
A moça se sentia feliz ao subir a escada... Pode ser que ela tenha pensado que os donos do imóvel fossem desleixados com o patrimônio. Mas esperava tanto da noite com o amado que nem se importou com o ruído da porta ao ser trancada.
(...)
Demorou, mas Tertuliano voltou a tomar atitudes.
Recolheu a cópia da carta que o Antônio Claro havia trazido... Juntou a
ela a resposta que a produtora enviara e também o retrato que ele tirou quando
usou a barba postiça (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/10/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_15.html). Colocou tudo no
lava-louça, queimou até que só sobrassem cinzas e fez com que a água cuidasse
de eliminar os vestígios.
Depois foi até o armário do quarto e retirou as fitas
de vídeo que estavam escondidas... De volta à sala, tirou toda a roupa e vestiu
as peças que Antônio Claro havia deixado sobre a poltrona, inclusive as de
baixo.
Num instante transformou-se no “outro Antônio Claro”... E era como se
estivesse ocupando um “lugar vago”. Isso nem pode ser considerado tão
descabido, pois o verdadeiro Antônio vivia momentos de “outro Tertuliano”.
É certo que se o ator chegasse pela manhã para assumir sua condição e
não encontrasse seus pertences teria de permanecer como se Tertuliano fosse até
que o professor retornasse.
(...)
Até aqui nada foi explicado... Mas o fato é que Tertuliano prosseguiu
tomando posse dos
demais objetos que o ator havia deixado... Colocou o relógio
no pulso e a aliança no dedo dos que são casados... O pente e o lenço do tipo,
aquele que tinha as iniciais AC, foram acomodados num dos bolsos da calça... No
outro bolso colocou as chaves da casa e do carro... Os documentos que
identificavam Antônio Claro foram parar num dos bolsos de trás.
Finalmente decidiu que usaria a barba postiça... De tanto que fora
manipulada já não aderia satisfatoriamente ao rosto... Mas o adereço teria fim
certo num “coletor de lixo” que ele esperava encontrar pelo caminho que
pretendia fazer. Também as fitas de vídeo seriam depositadas em meio a restos
orgânicos. Certamente tudo aquilo não demoraria a apodrecer.
Um passar de olhos pela
sala confirmou que não lhe faltava nada... Do quarto pegou apenas o livro sobre
as civilizações mesopotâmicas... Não entendia ao certo por que o pegara... Se
em breve retornaria aos aposentos poderia retomar a leitura no aconchego de
costume.
(...)
Ao retirar-se do
apartamento disse para si mesmo Alea
jacta est... A sorte estava lançada... Pelo visto deixava aos deuses o
desfecho de tudo o que viria a ocorrer... Começo de noite de uma sexta-feira do
mês de agosto... O que de certo sabia é que seguiria até o automóvel de Antônio
Claro e o conduziria ao seu endereço.
(...)
Logo que chegou à
frente do prédio, olhou para o apartamento que interessava e não viu nenhuma
iluminação interior... Estacionou o carro e se perguntou sobre o que faria a
partir daquele instante.
Refletiu e chegou à conclusão de que, já que estava um perfeito “outro
Antônio Claro”, e de posse de tudo o que o caracterizava, devia subir à “sua
casa”. Ao entrar, teria de verificar o motivo da falta de luz e se havia alguém
a esperá-lo... Providenciaria a iluminação já que é evidente que não se enxerga
na escuridão... Alguém a esperá-lo era pouco provável, pois deixara avisado à “esposa”
que passaria a noite fora por causa das gravações...
(...)
Com o livro sobre as
civilizações mesopotâmicas preso debaixo do braço, Tertuliano entrou no prédio
e tomou o elevador... No cubículo o aguardava um velho conhecido, o Senso
Comum.
Naturalmente o invisível quis saber o que ele estava
fazendo ali... Não havia necessidade de respostas... Então emendou mais uma de
suas advertências. Mas será que o professor estava para concretizar o diabólico
plano de dormir com a mulher do rival porque este dormia com a dele?
Tertuliano respondeu que era isso mesmo... Ele não se preocupava com o
que podia ocorrer depois... Até porque Maria da Paz nem desconfiaria que dormira
com um tipo que era “outro Tertuliano”
Problema mesmo teria o Antônio Claro...
Essa era a ideia de
Tertuliano, que justificava que o ator não teria como explicar à esposa o fato
de ter passado a noite com ela ao mesmo tempo em que estivera trabalhando longe
da cidade.
O professor completou que suas maquinações nada tinham de diabólicas...
Aquilo era simplesmente humano... Filosofou que se as pessoas fossem boas “o
diabo nem existiria”.
O Senso quis saber sobre o livro que ele carregava... Tertuliano
respondeu que não sabia... Era bem provável que o deixasse como recordação.
“O elevador parou no quinto andar”... Tertuliano quis saber se o Senso o
acompanharia... O invisível respondeu que se tratava do Senso Comum e a partir
daquele ponto onde estavam não havia lugar para ele.
Despediram-se... O Senso duvidou que ainda se vissem
no futuro.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/11/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_25.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto