Só podemos entender que Tertuliano queria muito bem à Maria da Paz... Seu drama aumentava na medida em que a sua consciência o incriminava... Fora covarde, não retribuíra à da Paz o amor que ela merecia, além disso, o seu egocentrismo a levara à morte.
Tipos que passavam pela calçada viam que o homem no carro estacionado estava muito amargurado... Um deles chegou a parar e oferecer-lhe ajuda. Ele dispensou, agradeceu e voltou a se desmanchar em lágrimas.
O pranto durou até que elas se esgotassem por completo... O que havia mais a se fazer? Todo o seu desgosto passaria em algum momento... A dor se dissiparia. Ademais, naquele momento mesmo entendeu que estava transformado em Antônio Claro para sempre... O que faria a partir de então? Para onde iria? Não sabia ao certo, mas colocou o carro em movimento.
Pensou que não teria como ir à própria casa, pois àquela altura todos já o tinham como morto... Tampouco teria como dizer à Helena que seu marido havia falecida porque ela o tinha pelo verdadeiro Antônio Claro... De nada valeria aparecer na casa de Maria da Paz... Ele jamais fora convidado para ali comparecer, além disso, só traria mais confusão.
(...)
Vemos o professor preocupado em acomodar-se num quarto de hotel onde
pudesse chorar à vontade e também colocar as ideias em ordem... Sim, precisava
de um quarto... A noite anterior havia passado com Helena porque a situação era
a da desforra... Deitara-se com a mulher do outro porque ele roubara-lhe a
Maria.
Todos nós entendemos de onde vem a lógica de sua
desforra... Tertuliano conhecia bem a “lei de talião” que inspirara o Código de
Hamurabi... O enredo da noite anterior havia sido o do “olho por olho, dente
por dente”. Os tipos eram idênticos, seus delitos também.
Tertuliano possuía muitos defeitos... Mas não admitiu a possibilidade de
retornar à casa do Antônio Claro para dormir novamente com a esposa deste...
Seria demais! O ator acabara de morrer!
(...)
Tertuliano dirigiu até o centro da cidade, onde há mais opções de
hospedagem... Não tinha como saber sobre o dia seguinte e os próximos... Era
professor e sabia que as escolas necessitam de docentes que ministram aulas de
História, mas obviamente não teria como retornar ao antigo trabalho...
E o caso do Antônio Claro? Oficialmente estava vivo... Tertuliano era o
seu “igual” e possuía seus documentos de identificação... Mas era certo que em
breve o mundo do cinema saberia que o ator renunciara a promissora carreira.
Quando a recepcionista do hotel pediu que se identificasse, o tipo teve
cuidado para não dar o nome que possuía a trinta e oito anos (oficialmente, naquele
momento, Tertuliano estava numa gaveta do necrotério).
A funcionária do
estabelecimento não teve nenhuma dúvida quando consultou o documento de
identificação do recém-chegado... Depois da assinatura, Tertuliano achou por
bem justificar o motivo de não trazer bagagens: havia perdido o voo, suas malas
ficaram no aeroporto, e era por isso que se instalava apenas para o pernoite.
Mas era evidente que a moça
não estava interessada nos transtornos que levaram o tipo até o estabelecimento...
Além disso, sua ocupação não lhe permitia perder tempo com situações que não
eram da alçada do hotel.
(...)
Tertuliano subiu ao
quarto que alugara e dirigiu-se ao banheiro para descarregar a bexiga.
Pretendia descansar a mente... Deitou-se, mas logo imaginou o veículo
que tão bem conhecia totalmente despedaçado, em seu interior os dois corpos desfigurados
e ensanguentados.
Isso o fez chorar
novamente... Na solidão do quarto soluçou como se criança fosse.
Talvez por isso tenha se recordado de repente de dona
Carolina... Evidentemente sua mãe já devia estar sabendo da fatalidade...
Puniu-se por não ter pensado nisso antes... Logicamente a polícia devia ter
chegado ao seu prédio e entrevistado os vizinhos... Os tiras procurariam por
parentes... Chegariam à vizinha do andar de cima e graças a ela contatariam dona
Carolina.
(...)
O trágico fim do filho e da jovem que parecia ser a companheira perfeita
traria muito sofrimento à senhora.
Tertuliano, o verdadeiro, o que está transmudado em
Antônio Claro, é quem pode trazer luz ao sofrimento da mãe.
É por isso que o vemos a telefonar para a casa dela...
Mas ninguém atende a chamada.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/11/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_29.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto