Nem mesmo Antônio teria condições de nos dizer como chegara à ideia de que as ofensas do Tertuliano (ser o seu “igual” e ter enviado a caixa com a barba postiça) só podiam ser retaliadas se partisse para cima da pobre Maria da Paz...

Evidentemente teria de alterar sua rotina... Vivia um período de estudo de texto e ao que tudo indicava as filmagens de “Julgamento do Ladrão Simpático”, no qual faria papel de advogado, não se iniciariam imediatamente... Como se sabe, o tipo deixava-se ficar por mais tempo na cama depois que Helena se retirava para o trabalho... Teria de inventar algo para justificar a necessidade de madrugar... Quem poderia dizer por quantos dias teria de fazer isso?
Antônio entendeu que não valia a pena desgastar-se mentalmente pensando sobre o que faria se não obtivesse êxito “na caçada à Maria” logo no primeiro dia... Resolveu dizer à Helena que teria uma reunião logo de manhã com os produtores do filme.
Helena estranhou que o compromisso de Antônio fosse tão cedo... Ele deu uma desculpa sobre o horário de voo do realizador, daí a pressa. A mulher fechou-se na cozinha para resolver o que comeriam no jantar... O ator aproveitou para esconder a barba postiça num canto do sofá pouco utilizado pelo casal.
(...)
Antônio Claro estacionou seu veículo do outro lado da rua onde esperava
que a da Paz saísse para o trabalho... Havia poucas pessoas perambulando nas
calçadas... A maioria dos estabelecimentos estava fechada, alguns apresentavam
comunicados sobre as férias dos funcionários.
Muitos homens se retiravam dos prédios para iniciarem o dia de trabalho...
Poucas mulheres... Para Antônio, nenhuma delas era a Maria que construíra em
seu raciocínio baseado nas “figuras femininas dos filmes em que participou”.
Às oito e meia duas mulheres saíram do prédio... Antônio não teve dúvida
de que a mais nova era a Maria da Paz, e que a senhora só podia ser a mãe
dela... Concluiu rapidamente que aquela era a mulher que havia atendido ao seu
telefonema... Ela devia estar adoentada e certamente as duas não dividiam o
apartamento com mais ninguém.
O tipo avaliou Maria dos pés à cabeça, considerou-a bonita e de físico
privilegiado... Sentenciou que o professor Tertuliano tinha bom gosto.
Imediatamente acionou o motor do carro, mas notou que as duas prosseguiram
caminhando. Calculou que se as seguisse a pé corria o risco de perdê-las assim
que elas chegassem ao veículo da garota.
Mas não teve outro jeito...
Retirou-se do carro e passou a persegui-las. Colocou-se a uns trinta metros das
duas... A mãe de Maria andava muito devagar e isso o irritava.
O tipo tinha a impressão de
que andara longo percurso, mas a verdade é que não tinha percorrido mais do que
trezentos metros... Eventualmente tinha de disfarçar e parar para contemplar
uma vitrine ou prédio... A barba postiça o incomodava e ele não via o momento
de a perseguição terminar.
Maria e a mãe
dobraram a esquina e chegaram às escadas de uma igreja, onde se despediram... A
jovem voltou pelo mesmo caminho... Antônio observou que, sozinha, ela tinha
elegantes passos.
Ele atravessou a rua e postou-se de frente a uma vitrine... Pelo vidro
pôde ver o momento em que Maria passou na outra calçada. Sem perder tempo,
virou-se para acompanhar o trajeto que ela fazia.
Para a sua surpresa, Maria
colocou-se na fila dos que esperam pelo ônibus... Ele fez o mesmo, todavia permitiu
que três usuários ficassem à sua frente... Não se sentia totalmente
disfarçado... Evidentemente a barba não escondia olhos, orelhas, cabelo...
Também sua alma não podia
ser camuflada... Mas, como diz Saramago, “sobre esse ponto faremos silêncio”.
O ônibus chegou e Maria se acomodou num dos
bancos... Antônio permaneceu em pé e escondido entre os demais passageiros.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/11/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_58.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto