De bem pouca valia seria a carta que Tertuliano escrevera à produtora... No caso de encontrá-la, o que suas linhas podiam revelar de tão especial? É verdade que, de posse do documento, o ator teria condições de conferir o seu conteúdo e, se fosse mesmo o caso de só encontrar elogios, saciar o ego ao ler sobre o reconhecimento de sua importância para o cinema.
De tanto pensar a respeito da possibilidade de algum funcionário atendê-lo, Antônio Claro resolveu que não podia deixar passar a oportunidade de chegar à produtora... Levantou-se silenciosamente e colocou-se no sofá da espaçosa sala a pensar sobre como justificaria à Helena a ida ao escritório dos patrões.
Não demorou e arquitetou uma desculpa interessante... Pôs-se a cochilar no próprio sofá...
(...)
Helena levantou-se no horário habitual e o encontrou
fora do quarto... Antônio despertou manifestando certo espanto e foi logo
dizendo que passara mal à noite... Evidentemente estivera estudando suas falas
para o próximo filme até que descobriu um erro no caderno com as guias que
orientam também as ações da personagem... O que poderia fazer senão dirigir-se
imediatamente à produtora para que corrigissem o erro?
A mulher tentou acalmá-lo dizendo que ele voltasse a dormir, pois a correção
do equívoco no roteiro podia ficar para depois do almoço... Lamentou que ela mesma
não pudesse fazer o mesmo e acrescentou que dentro de duas semanas entraria de
férias e aproveitaria para dormir bastante... Ainda mais com a ajuda daqueles
tranquilizantes!
Antônio emendou que não se conformava de a esposa
pensar apenas em dormir durante as férias... Helena respondeu que a cama era o
lugar em que se encontrava mais protegida, como que num castelo seguro graças
às altas muralhas.
Ele ousou dizer que a compreendia, já que seus pensamentos deviam estar
agitados “por dois homens”... Ela se pronunciou com indignação, pois não
acreditava que ele estivesse a falar com seriedade. O ator disse que não havia
falado com o sentido que supostamente ela atribuía à afirmação... Completou
que, além do mais, não tinha o menor cabimento sentir ciúme de alguém que
sequer conhecia e que não pretendia conhecer.
(...)
Como se vê, Antônio Claro não tinha como contar a verdade sobre o que
pretendia fazer na produtora... Disse qualquer coisa a respeito da absurda
situação que vivenciavam com o tipo duplicado... Depois quis mostrar que sua
preocupação era com a saúde de Helena... Passar as férias acamada? Sugeriu
viajarem. Mas de pronto a esposa explicou que preferia permanecer em casa...
Além do mais sabia que ele estava comprometido com o trabalho para o próximo
filme.
Antônio ainda sugeriu passarem alguns dias na casa de campo... Bastava
solicitar o serviço de alguém do povoado para que o jardim fosse tratado e que
fizesse uma limpeza geral. Helena garantiu que aquilo era uma solidão total...
Diferente da “solidão vivenciada no próprio lar”, onde se sentia melhor. E não
adiantou o marido propor alternativas... Por isso encerraram a conversa e
fizeram o desjejum.
Helena retirou-se para o trabalho... Pouco depois Antônio também
resolveu sair... O tipo pensava no contra-ataque... Todavia não tinha certeza
do que o motivava.
(...)
Os atores aparecem pouco no
escritório da produtora... Ainda mais para requisitar uma carta de fã... É
claro que o conteúdo que busca é no mínimo intrigante... Por que será que um
admirador solicitava o seu endereço?
Por sorte, um dos chefes de
serviço do local era um seu conhecido dos tempos escolares... Após os
cumprimentos de praxe, Antônio foi dizendo que pretendia ter acesso a uma carta
de admirador... O tipo chamou pelo interfone uma jovem funcionária que tinha
condições de atendê-lo.
A moça o recebeu com
sorriso e elogios sobre seu último filme e quis saber em quê podia ajudá-lo.
Então Antônio Claro disse que queria conhecer uma carta de certo Tertuliano
Máximo Afonso.
A funcionária adiantou que se a missiva fosse das que solicitavam
fotografias era certo que já não se encontrava na produtora porque cartas dessa
natureza são recebidas aos montes e, depois de atendidas, são eliminadas...
Evidentemente o prédio teria de contar com imenso arquivo se resolvesse guardar
todas.
O ator explicou que, até
onde sabia, o admirador havia solicitado o seu endereço... Mas o que o levava
até o escritório era o fato de saber que o tipo acrescentara alguns comentários
que o interessavam diretamente.
Depois Antônio Claro teve
de inventar que ouvira falar do autor da carta... Um professor de História...
Provavelmente sua correspondência teria chegado ao escritório há duas ou três
semanas.
A moça não era a responsável pelos registros e
arquivamentos... A titular estava de férias... Todavia ela tinha algum acesso
ao sistema... Disse com convicção que não se recordava do estranho nome
Tertuliano... Sendo assim, não podia dar esperança de encontrar algo.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/11/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-em.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto