Esta é a última postagem sobre as considerações de Kapuscinski acerca do golpe de 19 de junho de 1965 na Argélia...
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O golpe revelou um pouco sobre a distância que havia entre os líderes
palacianos envolvidos nas intrigas políticas e os milhares de camponeses
miseráveis.
A realidade vivida por eles
era ignorada pelos políticos... Esses não tinham ideia, por exemplo, das
dificuldades que uma prolongada estiagem poderia provocar à terra “naturalmente
improdutiva”... Quase sempre, aos camponeses restavam suas preces dirigidas a
Alá na esperança de terem o que comer a cada dia.
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O Conselho Revolucionário que assumiu o poder era
constituído em sua maioria por representantes dos regimentos armados (que, além
das forças policiais, somavam algo em torno de cem mil homens).
Para Kapuscinski, o governo de Boumédiène podia ser classificado como “nacionalista
de esquerda”... Mas ele mesmo esclarece que esses conceitos deviam ser
colocados com certa reserva, já que “as forças de esquerda (na África como um
todo) ainda não estavam claramente definidas como elemento da realidade social
e política”.
Além disso, o golpe na Argélia não podia ser analisado
apenas a partir dos parâmetros europeus... Num primeiro momento somos mesmos
tentados a avaliar a retirada de Ben Bella como algo que se podia evitar...
Todavia há que se considerar a idade média dos membros do Conselho
Revolucionário (entre 32 e 34 anos), que tinha em Boumédiène o seu mais velho
quadro (39 anos)...
Outro elemento a ser levado em conta é a própria “índole árabe”,
conhecida por sua “sensibilidade extremada”, sobretudo em relação às questões
de honra...
Raramente o seu sangue quente deixa “passar em branco” uma provocação, e
logo se apresenta pronto para reagir às agressões.
Para esse povo, a honra é sagrada... Boatos sobre supostas ofensas de Ben
Bella provocavam reações diversas e, por isso, não poucos sugeriam sua prisão.
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Para Kapuscinski, essas constatações revelam a falta de experiência dos
principais atores dos cenários políticos africanos... Era certo que eles não
tinham maturidade e não sabiam “prever os irreversíveis efeitos de suas
decisões”.
Ainda tendo como parâmetro a tradicional política europeia, só podemos
concluir que a realidade africana era das mais complexas e “incoerentes”... Assim,
nenhuma certeza podia ser extraída de qualquer análise.
O panorama europeu era
sempre previsível (década de 1960): a Suíça e sua neutralidade; a Alemanha Oriental
não reconheceria a Ocidental; na Inglaterra, trabalhistas ou conservadores
governariam...
O autor faz referências a algumas
alterações políticas vivenciadas por nações africanas... As mudanças haviam
sido tão radicais que até os analistas políticos mais experientes tinham
dificuldades de interpretá-las... Ele cita alguns exemplos intrigantes: o Congo
Brazzaville, conhecido pelo seu “conservadorismo reacionário”, transformou-se
em “revolucionário” em um mês; o Quênia, tido como “revolucionário”, mergulhou
no “reacionarismo” em dois meses: Nyerere (da Tanganica) era conhecido por sua
postura pró-Ocidente, mas em duas semanas tornou-se o maior entusiasta de uma
revolução na África; Kenyatta (Quênia), ao contrário, simbolizava a luta contra
os colonizadores e, em poucos meses, transformou-se num dos maiores
reacionários.
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Retornando ao panorama
argelino, a conclusão era a de que restava o Exército no conturbado processo
revolucionário.
Essa instituição era desconhecida pelo povo e, por isso, temida... Ainda
de acordo com Kapuscinski, o relacionamento entre os seus oficiais lembrava o
de “mafiosos ou de membros de uma seita”... Os militares trocavam apertos de
mão e beijos no rosto em vez de continência.
Também o Conselho
Revolucionário não era instituição homogênea... As várias tendências políticas
estavam nele representadas... O temor a Ben Bella uniu reacionários e
progressistas...
Kapuscinski não duvidava que os integrantes se
desentenderiam no futuro, e que novos golpes ocorreriam...
A Cabília poderia se sublevar...
É como Boumédiène dizia (a
Heikal, do Egito):
“A Revolução argelina é uma Revolução de
surpresas”.
Leia: A
Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto