terça-feira, 15 de março de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – “últimas” considerações sobre a Argélia; falta de consonância entre os políticos palacianos e a esmagadora maioria da população; sobre as dificuldades de análise do panorama político das jovens nações africanas em processo revolucionário; uma “revolução de surpresas”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/03/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_13.html antes de ler esta postagem:

Esta é a última postagem sobre as considerações de Kapuscinski acerca do golpe de 19 de junho de 1965 na Argélia...
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O golpe revelou um pouco sobre a distância que havia entre os líderes palacianos envolvidos nas intrigas políticas e os milhares de camponeses miseráveis.
A realidade vivida por eles era ignorada pelos políticos... Esses não tinham ideia, por exemplo, das dificuldades que uma prolongada estiagem poderia provocar à terra “naturalmente improdutiva”... Quase sempre, aos camponeses restavam suas preces dirigidas a Alá na esperança de terem o que comer a cada dia.
(...)
O Conselho Revolucionário que assumiu o poder era constituído em sua maioria por representantes dos regimentos armados (que, além das forças policiais, somavam algo em torno de cem mil homens).
Para Kapuscinski, o governo de Boumédiène podia ser classificado como “nacionalista de esquerda”... Mas ele mesmo esclarece que esses conceitos deviam ser colocados com certa reserva, já que “as forças de esquerda (na África como um todo) ainda não estavam claramente definidas como elemento da realidade social e política”.
Além disso, o golpe na Argélia não podia ser analisado apenas a partir dos parâmetros europeus... Num primeiro momento somos mesmos tentados a avaliar a retirada de Ben Bella como algo que se podia evitar... Todavia há que se considerar a idade média dos membros do Conselho Revolucionário (entre 32 e 34 anos), que tinha em Boumédiène o seu mais velho quadro (39 anos)...
Outro elemento a ser levado em conta é a própria “índole árabe”, conhecida por sua “sensibilidade extremada”, sobretudo em relação às questões de honra...
Raramente o seu sangue quente deixa “passar em branco” uma provocação, e logo se apresenta pronto para reagir às agressões.
Para esse povo, a honra é sagrada... Boatos sobre supostas ofensas de Ben Bella provocavam reações diversas e, por isso, não poucos sugeriam sua prisão.
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Para Kapuscinski, essas constatações revelam a falta de experiência dos principais atores dos cenários políticos africanos... Era certo que eles não tinham maturidade e não sabiam “prever os irreversíveis efeitos de suas decisões”.
Ainda tendo como parâmetro a tradicional política europeia, só podemos concluir que a realidade africana era das mais complexas e “incoerentes”... Assim, nenhuma certeza podia ser extraída de qualquer análise.
O panorama europeu era sempre previsível (década de 1960): a Suíça e sua neutralidade; a Alemanha Oriental não reconheceria a Ocidental; na Inglaterra, trabalhistas ou conservadores governariam...
O autor faz referências a algumas alterações políticas vivenciadas por nações africanas... As mudanças haviam sido tão radicais que até os analistas políticos mais experientes tinham dificuldades de interpretá-las... Ele cita alguns exemplos intrigantes: o Congo Brazzaville, conhecido pelo seu “conservadorismo reacionário”, transformou-se em “revolucionário” em um mês; o Quênia, tido como “revolucionário”, mergulhou no “reacionarismo” em dois meses: Nyerere (da Tanganica) era conhecido por sua postura pró-Ocidente, mas em duas semanas tornou-se o maior entusiasta de uma revolução na África; Kenyatta (Quênia), ao contrário, simbolizava a luta contra os colonizadores e, em poucos meses, transformou-se num dos maiores reacionários.
(...)
Retornando ao panorama argelino, a conclusão era a de que restava o Exército no conturbado processo revolucionário.
Essa instituição era desconhecida pelo povo e, por isso, temida... Ainda de acordo com Kapuscinski, o relacionamento entre os seus oficiais lembrava o de “mafiosos ou de membros de uma seita”... Os militares trocavam apertos de mão e beijos no rosto em vez de continência.
Também o Conselho Revolucionário não era instituição homogênea... As várias tendências políticas estavam nele representadas... O temor a Ben Bella uniu reacionários e progressistas...
Kapuscinski não duvidava que os integrantes se desentenderiam no futuro, e que novos golpes ocorreriam...
A Cabília poderia se sublevar...
É como Boumédiène dizia (a Heikal, do Egito):
“A Revolução argelina é uma Revolução de surpresas”.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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