A África do Sul havia conquistado sua independência em relação à Inglaterra em 1961... Em meados daquela década de 1960 o mundo queria entender como a minoria branca submetia toda população africana do país aos horrores do apartheid...
(...)
Kapuscinski
explica que três componentes que constituíam a “atitude e visão de um
africânder médio” deviam ser entendidos... O primeiro deles era a própria
posição (marcada profundamente pelo seu passado) que haviam conquistado no
país... Os outros dois elementos seriam a Igreja e o partido africânder.
Em 1912 havia sido formado
o primeiro partido africânder... E eles só chegaram ao poder em 1948... Porém a
sua Igreja datava desde o século XVII, quando os primeiros colonos começaram a
se instalar no extremo sul do continente. Da Europa, eles traziam o
Calvinismo...
A
Igreja dava-lhes unidade e toda fundamentação que necessitavam para se sentirem
diferenciados em relação aos demais povos... Se não podiam ter um país e
Parlamento exclusivos, tinham a Igreja que, mais do que doutrinação religiosa,
fornecia o embasamento ideológico que permitiria a fundação do partido político
que viria a assumir o poder.
A
Predestinação sustentada pelo Calvinismo era levada muito a sério pelos
africânderes, que entendiam que os seres humanos nasceram bons ou maus... A
ordem natural estava bem definida e, dessa maneira, aprendiam e ensinavam que
uns nascem para mandar naqueles que devem obedecer... Ainda de acordo com o
ensinamento, eles (que haviam nascido na fé) eram superiores aos pagãos. Não
tinham a menor dúvida de que seriam salvos e de que sua existência cumpria
desígnios divinos.
Também
de acordo com o que aprendiam e ensinavam estava a máxima de que os brancos
eram os abençoados por Deus, enquanto que os negros eram os amaldiçoados que
certamente seriam levados à extinção... O negro jamais poderia mudar a cor da
pele... Essa era, então, uma “mácula determinada por Deus”... Os negros deviam
se conformar com sua condição e servir aos brancos.
Ainda
de acordo com o autor de A Guerra do
Futebol, a Bíblia foi o único livro que os africânderes levaram quando
partiram para o isolamento das terras mais distantes durante o Great Trek... Em
suas consciências, imaginavam representar o bastião em defesa da religião mais
pura, já que os primeiros de sua gente haviam deixado a Europa por causa das
perseguições religiosas impostas por autoridades eclesiásticas que exigiam que
livros e homens fossem lançados à fogueira.
Pode-se
dizer que “a Bíblia foi o único livro lido pelos africânderes” por décadas...
Kapuscinski esclarece que a maioria deles era analfabeta, então os textos
bíblicos que conheciam foram-lhes transmitidos oralmente. A todas temáticas
aplicavam a dicotomia branco/negro, sendo que o Bem e a Salvação se aplicavam
ao Branco... Já o Mal e a Danação só podiam se aplicar ao Negro... Diziam que
Hiob (Jó) sofrera ao notar que sua pele havia se tornado negra “por causa de
seus pecados”... Assim como este, muitos outros trechos bíblicos eram
interpretados pelos africânderes de modo a reforçar o seu racismo, entendido
como “dogma de fé”.
Dessa
maneira, qualquer opinião a respeito de cessão de direitos aos negros era vista
por eles como blasfêmia e ultraje à sua crença e Igreja.
Os africânderes assumiam plenamente a condição de
“povo escolhido” e essa máxima esteve incutida nos discursos oficiais e na
literatura produzida para o seu povo...
Na finalização dessa
temática, Kapuscinski apresenta três importantes fragmentos que nos ajudam a
problematizar a complexa lógica africânder e a intolerância imposta pelo regime
segregacionista do apartheid.
Fragmentos de G.D. Scholtz
– historiador africânder:
A religião tornou possível a sobrevivência africânder entre os negros,
já que lhes permitiu comparar o seu papel com o representado pelo povo bíblico
de Israel – assim como era proibido a um israelense misturar-se com os pagãos,
os africânderes consideram uma proibição divina misturar-se com aqueles que não
têm pele branca.
Fragmentos extraídos de The
History of apartheid, de L. E. Neame:
Ameaças e
advertências não surtem efeitos sobre os africânderes. Um observador de fora
não tem condições de imaginar com que força interior os africânderes tratam das
questões de raça e do futuro de sua nação. Nesse campo, não há para ele nenhuma
possibilidade de compromisso. Trata-se de calvinistas que acreditam
fanaticamente que Deus os encaminhou para a África do Sul, que os conduziu por
inúmeros perigos, e eles se mostram prontos a morrer em defesa de seu destino.
Acreditam que, ao colocá-los na África do Sul, o Onipotente confiou-lhes uma
missão divina e que é sua obrigação defender o país para seus filhos e netos.
Eles se trancam em sua fortaleza, dispostos a enfrentar uma nova guerra contra
hordas de bárbaros e, caso a Providência abra um túmulo diante deles, entrarão
nesse túmulo – lutando.
Fragmentos de A. B. Dupresh
– um teólogo africânder muito influente no governo:
Se tivermos que desaparecer do sul da África
e o nosso destino for morrer como Nação Branca, anunciamos ao mundo todo, em sã
consciência e em nome da nação dos africânderes, que preferiremos desaparecer,
como deseja Deus, que dirige o nosso destino, a cometer o suicídio que seria
assumir o caminho da integração e da assimilação com os negros, Se os
não-brancos nos massacrarem será um novo triunfo da barbárie, que Deus tão
milagrosamente evitou às margens do Rio de Sangue (batalha contra os zulus,
vencida em 1882 pelos africânderes). Apesar disso, acreditamos piamente que
Deus, na Sua grandeza, continua a zelar pelo destino de nossa nação. Preferimos
morrer confiantes na predestinação a nos ligar aos negros, perdendo assim nossa
singularidade e traindo a missão que Ele nos confiou.
Leia: A
Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto