Peste não permitiu que o primeiro alcaide seguisse com os demais... Disse-lhe que tinha necessidade da companhia de alguém que fosse da confiança do povo... As decisões que ele tomaria seriam mais tranquilamente aceitas se transmitidas por uma pessoa “desse quilate”.
O primeiro alcaide demonstrou certo desconforto... Mas logo que Peste voltou-se à Secretária, ele apressou-se em garantir que seria uma honra servi-lo.
(...)
Peste ordenou que a
Secretária instruísse o homem a respeito dos decretos que a população deveria
conhecer imediatamente... Ela foi ditando a “ordem concebida e publicada pelo
primeiro alcaide”...
O tipo se espantou e afirmou que ainda não havia
concebido nada... A Secretária explicou que ele devia se orgulhar daqueles
préstimos, já que seria poupado de qualquer esforço mental e, doravante,
bastaria assinar as redações que lhe seriam entregues.
O alcaide não teve tempo de contestar... A Secretária emendou que a ata
rezava que a “vontade do bem amado soberano” (Peste) devia ser regulamentada...
Os cidadãos atingidos por infecção teriam “assistência filantrópica”... Os
demais (guardas, executores e coveiros) teriam o compromisso de aplicar as
ordens que receberiam.
Ele não entendeu a linguagem... A Secretária
esclareceu que as pessoas deviam se habituar ao obscurantismo... “Quanto menos
compreendessem, melhor prosseguiriam na marcha”.
Enquanto entregava as ordens ao alcaide, a Secretária colocou à sua
disposição os “mensageiros de rostos amáveis”... Ele deveria sair pela cidade
anunciando-as... Mesmo as pessoas de compreensão mais lenta teriam de ouvir a
mensagem de Peste.
(...)
O povo comentou a retirada do governador... As pessoas se mostravam
admiradas com sua decisão... O louco Nada argumentava que o governador tinha
esse direito... Sobretudo porque “o Estado é ele”... E era preciso proteger o
Estado.
Para o povo a situação era simples assim... Se ele era o Estado, agora
ele não era mais nada... Peste seria o Estado. Nada queria que todos
entendessem que aquilo não fazia a menor diferença... Governador ou Peste... O
Estado sempre estaria presente.
(...)
De fato os cidadãos não sabiam o que fazer.
Andavam de um lado para
outro quando um primeiro mensageiro chegou anunciando que todas as casas
infectadas deveriam ser marcadas por uma estrela negra... Nela estaria inscrito
que “somos todos irmãos”. Enquanto a casa não pudesse ser reaberta, a
sinalização permaneceria nela. A lei puniria qualquer um que a retirasse.
Alguém quis saber que lei
era aquela... Mas o mensageiro já havia se retirado... Outro qualquer disse que
se tratava da “nova lei”.
(...)
O coro prosseguiu o
tom de lamentação...
O povo havia sido abandonado por aqueles que garantiam que o protegia...
A cidade não era a mesma...
Brumas avolumavam-se pelos quatro cantos...
Não havia mais perfume de frutos nem de flores...
Cádiz, a cidade marítima, se tornara sufocante... O vento cessou...
Que lástima saber que os governantes estavam errados
ao dizerem que nada aconteceria!
Como alguém havia pronunciado, de fato, “algo estava acontecendo”... E o
que restava fazer?
Fugir era a solução... Fugir antes que as portas se fechassem sobre a
desgraça de todos.
(...)
O coro mal terminou suas
palavras e o segundo mensageiro apareceu.
Ele pronunciou que todos os gêneros de primeira
necessidade estariam à disposição da comunidade... Seriam distribuídos em
partes iguais... Partes ínfimas, é verdade, mas apenas aos que comprovassem
lealdade à nova ordem.
(...)
Uma primeira porta da cidade começou a se fechar...
Imediatamente o terceiro mensageiro tomou a palavra e
anunciou que todas as luzes deveriam ser apagadas às nove horas da noite...
Ninguém poderia permanecer nos locais públicos após este horário... E nem mesmo
circular sem um passaporte (apenas concedido excepcionalmente) seria permitido.
Os contraventores seriam punidos no rigor da lei.
(...)
Vozes espantadas gritaram que as portas estavam sendo fechadas... Todas
seriam fechadas realmente?
O coro alarmou que todos deviam seguir para as portas que ainda estavam
abertas... Eram “filhos do mar”, então para lá deviam seguir; para onde não há
portas nem muralhas... Todos deviam correr em direção ao “vento que liberta”,
ao “mar livre”, à “água que lava”.
(...)
O quarto mensageiro anunciou que estava proibido prestar qualquer
assistência aos infectados... As autoridades se encarregariam deles... Elas só
esperavam que os cidadãos colaborassem denunciando os que caíssem doentes.
Na sequência sugeriu que os
que denunciassem membros da própria família seriam duplamente reconhecidos,
pois receberiam o dobro de ração alimentar... A “ração cívica”.
(...)
A segunda porta da cidade começou a se fechar.
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto