Estamos no ponto em que a casa do juiz Casado está cercada pelas forças policiais do regime; elas estão no rastro do jovem rebelde Diogo; o magistrado pretende entregá-lo para livrar o lar da maldição; o rapaz tentou impedir a ação ao agarrar o irmão de Vitória, ameaçando contaminá-lo; a irmã de Vitória sugere que o pai não se dobre à chantagem; a mãe está desesperada, pois sabe que o marido não se importa com o pequeno, que na realidade não é seu filho legítimo...
A mulher colocou-se diante da porta para impedir que o juiz a abrisse. Ao mesmo tempo ela implora a Diogo que deixe o garoto em paz.
(...)
A irmã de Vitória invejava
a condição privilegiada que o bastardo ocupava na casa... Ela insistiu que o
pai não cedesse. Desesperadamente, a mulher exigiu que a moça se calasse e
também chamou a atenção do marido que estava prestes a cometer grande
injustiça.
O juiz pensava apenas no fato de “ter a lei ao seu
lado” e de poder “tirar proveito disso”. Falou sobre isso sem demonstrar o
menor escrúpulo.
Na sequência, a mãe de Vitória desabafou contra a ética do esposo
magistrado... Disse que “cuspia sobre aquela lei”... Ao seu favor, alegava o “direito
dos que amam” e que rejeitam se separar... Também os culpados têm o direito de
serem perdoados; os arrependidos também podem ser honrados...
Ela prosseguiu em seu protesto dizendo que o juiz
teria cometido várias ações indignas... Afinal, qual lei justificaria ou
legitimaria sua covardia ante o capitão que o desafiou para um duelo certa vez?
E quando usou de manobras para fugir ao serviço militar? O que dizer sobre sua
conduta ao aproveitar-se sexualmente de uma jovem que processava um patrão
injusto?
(...)
O casal tinha um histórico
de desavenças... De repente, tudo foi escancarado.
O homem exigiu que a esposa se calasse... Vitória se assustou com o que
acabara de ouvir... Mas a mãe garantiu que não se calaria, pois aguentara
muitos anos de sofrimento... Somente “o amor à honra e a Deus” puderam
silenciá-la.
Todavia, restava alguma honra? Como podia se calar quando via ameaçada a
vida mais preciosa para ela?
A mulher concluiu dizendo que o direito só podia estar do lado dos que “sofrem,
gemem e esperam”... De modo algum estaria do lado dos que ”calculam e acumulam”.
Diogo sensibilizou-se com aquelas palavras e libertou o garoto... A irmã
de Vitória protestou dizendo que o direito a que a mãe se referia só podia se
relacionar ao adultério.
Em sua defesa, a mãe disse
que reconhecia seu pecado e que poderia gritá-lo ao mundo, porém defendia que
tudo o que se faz “no calor do amor deve merecer piedade”... A garota exclamou só
podia ser a piedade que merecem as cadelas. A mulher não discutiu, apenas
confirmou que também as cadelas têm ventre para “gozar e conceber”.
(...)
O juiz não se importou com
o palavrório que a esposa fez em sua defesa... Disse que denunciaria Diogo não
só em nome da Lei, mas também de seu ódio. Aquela perturbação não poderia ficar
impune.
A indignação de
Vitória cresceu a tal ponto que não pôde esconder que estava enojada com as
palavras do pai juiz... Então era o ódio que orientava os julgamentos que
presidira nos tribunais? As melhores leis só poderiam ter “gosto amargo” em sua
boca... Ela mesma sugeriu a Diogo que abraçasse a todos naquela casa para que
apodrecessem com a infecção. Menos o juiz! Ele deveria continuar vivo... Para
ele a vida já era uma punição.
(...)
Diogo pediu que o deixassem... Estava envergonhado ao ver no que a gente
digna de outrora havia se tornado.
Vitória garantiu que também
morria de vergonha.
O rapaz lançou-se contra uma janela e escapou à rua.
A moça fugiu por uma porta lateral.
A esposa do juiz sentenciou que se aproximava o tempo
dos tumores se arrebentarem... Toda a cidade devia estar ardendo em febre.
O marido a chamou de “cadela”...
Ela o chamou de “juiz”...
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-segundo_36.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto