Sobre o barqueiro, a secretária disse que também ele “se acreditava livre” sem saber que “estava inscrito como todo mundo”... Diogo protestou contra a sua linguagem dúbia afirmando que os homens não suportavam aquele tipo de expediente. Era preferível que ela fosse direto ao objetivo.
A secretária não se importou com o drama manifestado. Apenas confirmou que toda cidade tem o seu classificador. Aquele (caderno) que tinha nas mãos era o de Cádiz. Ninguém ficava fora da lista...
Diogo pensou nas palavras da mulher... Pensou sobre a condição do barqueiro, de “apartado dos acontecimentos”... Então provocou dizendo que, apesar da certeza anunciada por ela, todos podiam escapar de seu controle.
Ela refletiu por um instante e disse que algumas vezes ocorria de um ou outro ser esquecido... Mas avisou que esses sempre “se traíam”. Principalmente se chegassem aos cem anos e se se vangloriassem por isso... Os jornais divulgam sempre, e ela anota os nomes...
Diogo não entendia como ela podia contar vantagem numa situação como a que havia exemplificado... Sobretudo porque “durante cem anos” aqueles “esquecidos” teriam negado o sistema... Em sua opinião, era exatamente isso o que todos os habitantes de Cádiz vinham fazendo (ainda veremos se ele tinha razão).
A secretária garantiu que cem anos não representam nada. Para ela, o que contava era o fato de os tipos eventualmente esquecidos pela lista não terem significância. O que era um tipo desses num universo de 372 mil homens? Interessava ao sistema agir sobre os que estavam na faixa etária dos 20 anos!
(...)

Debochando, a secretária liberou um pequeno sorriso e disse que agira
sem pensar. Depois anunciou que o “riscado da lista” era o barqueiro... Aquele
mesmo sobre o qual falavam pouco antes... Ainda debochando, completou que foi
por “puro acaso”.
Diogo a olhou com repugnância e se manifestou a respeito da medonha
aversão que sua presença anunciava. Ela deu a entender que sua tarefa era das
mais ingratas, mas era preciso cumpri-la... Até confessou que no começo não se
sentia confiante, porém o tempo dera-lhe destreza e firmeza à mão.
A secretária aproximou-se do rapaz... Ele pediu que se afastasse... Mas,
em vez disso, ela se aproximou mais enquanto ia falando sobre o aperfeiçoamento
do sistema... Uma máquina seria colocada à sua disposição.
(...)
A secretária chegou a
tocá-lo. Nesse momento ele avançou contra ela e agarrou-a pela gola. Furioso,
gritou que ela deveria terminar de uma vez por todas com aquela agonia... Seria
a única forma de salvar “o belo sistema”.
Ele desabafou que ela não
gerava nada além de estatísticas, gráficos... Enfim podia-se entender por que
tinham como alvo as grandes populações... “O trabalho podia ser feito no
silêncio e no odor tranquilo da tinta”.
Diogo prosseguiu
esbravejando que eliminá-lo frente a frente devia ser incômodo para ela... Na
individualidade, o homem “grita sua alegria e agonia”. Por que não matá-lo
naquele instante? Era certo que enquanto vivesse não sossegaria em sua missão
de “desarrumar aquela bela ordem”.
O rapaz deixou claro que se recusava a aceitar o regime de Peste. A
secretária quis adulá-lo... Tratou-o por “querido”... Mas ele exigiu que ela se
calasse, pois pertencia a uma raça que honrava igualmente a morte e a vida.
(...)
A secretária não discordou ou apresentou
qualquer objeção às palavras do jovem.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-segundo_72.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto