Diogo seguiu em direção ao cais. A escuridão predominava, mesmo assim ele pôde notar a presença de alguém a certa distância... Ele cumprimentou o tipo, que respondeu a gentileza.
Tratava-se do barqueiro... Ele estava fazendo o reabastecimento de pão e leite, além de trazer a correspondência para as famílias refugiadas em embarcações ancoradas em águas mais adiante.
Diogo questionou as atividades desempenhadas pelo homem porque todos sabiam que elas estavam proibidas pelo novo regime. O barqueiro explicou que se tratava de um tipo analfabeto, então não teve como conhecer as novas regras que lhe chegaram em papéis distribuídos pela administração. Além disso, quando os mensageiros de Peste anunciaram as determinações pelos quatro cantos da cidade, era certo que ele estava em mar aberto.
Diogo pediu ao barqueiro que o conduzisse aos barcos. O tipo respondeu no mesmo instante que a proibição o impedia a realização de tal manobra.
O rapaz quis convencê-lo de que o inconveniente podia ser superado com a alegação de que ele simplesmente não conhecia a lei, pois jamais ouvira o seu anúncio... O tipo explicou que a proibição dizia respeito às pessoas que estavam nas embarcações.
Diogo não entendeu. Então o barqueiro explicou que o seu contato com aquelas pessoas podia prejudicá-las... A possibilidade de ele contaminá-las era evidente.
Mas o barqueiro foi convencido a realizar o transporte depois que Diogo ofereceu-lhe bom pagamento, e de assumir a responsabilidade pela infração.
(...)
Diogo estava para embarcar quando foi interrompido pela secretária de
Peste. Ela impediu a retirada... Disse que aquilo não era previsto e, além do
mais, tinha certeza de que ele não desertaria. Ele respondeu que nada o faria
permanecer em terra.
A secretária deixou claro que, se ela não o quisesse, ele não
embarcaria. Além do mais, ele devia saber que “tinham contas a ajustar”. A um
recuo seu, Diogo a acompanhou.
Ele disse que morrer não era nada... Todavia não podia aceitar a
desmoralização. Ela respondeu que apenas executava ordens... Mas era verdade
que tinha “direito de veto” sobre os nomes que estavam no caderno...
Como que a menosprezar as
prerrogativas da mulher, Diogo garantiu que o seu povo pertencia apenas à
terra... A secretária concordou que os locais lhe pertenciam apenas de “certa
maneira”, e não “por completo”... Eles até lhe agradavam, mas ela era uma “cumpridora
de ordens”, apenas isso.
(...)
A secretária sorria
enquanto manipulava o seu caderno... Diogo garantiu que a desprezava e que, em
vez de sorrisos, preferia que ela expressasse o ódio que verdadeiramente
guardava em seu interior.
A fiel seguidora de
Peste quis dizer que aquele diálogo não era “regulamentar”. Ela se permitia
àquele tipo de encontro e conversa... Disse que era verdade que se fatigava com
tanto serviço, e que isso a tornava sentimental.
A mulher falava sobre essas coisas enquanto continuava a brincar com o
caderno... Diogo quis tomá-lo, mas ela o dissuadiu no mesmo instante ao dizer
que não havia nada de importante em suas folhas, e que aquilo era apenas um
simples “classificador, meio agenda, meio fichário”.
Ele notou que ela estava se aproximando demais,
dando a entender que pretendia acariciá-lo... Sua reação foi a de se virar para
o barqueiro, mas este já havia partido.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-segundo_23.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto