Nada estava na portaria...
Tirava as dúvidas e dava encaminhamentos a petições diversas dos cidadãos.
Vemos que ele assumiu o papel de capacho de Peste. Seu procedimento se baseava na cartilha do regime, uma vasta legislação que, além de impor a nova ordem e vontade do ditador, servia para reprimir, confundir e travar o desenvolvimento social.
(...)
Uma mulher apareceu com uma queixa grave...
Sua casa fora requisitada pelo novo governo... Serviços administrativos
foram instalados na residência. Nada manifestou sua aprovação... Mas a senhora
não entendia por que devia perambular pelas ruas se haviam lhe prometido novo
alojamento.
Nada fazia o discurso oficial... Lembrava que o
governo havia pensado em tudo... Essas coisas... Era só uma questão de
preencher o formulário e a petição.
A mulher quis saber se o procedimento resolveria sua situação... Nada
respondeu que haveria apressamento se ela fornecesse uma “justificativa de urgência”,
que nada mais era do que um documento que comprovava a necessidade de
retirarem-na das ruas.
Mais uma situação absurda...
Ela não entendia por que tinha de preencher aquela papelada e redigir
considerações se era evidente que o fato de os filhos ficarem sem um teto já
era dramático por si só.
Nada explicou que se o atestado fosse convincente a administração
providenciaria o novo teto... Definitivamente, disse em tom de conclusão, o
fato de as crianças estarem perambulando e dormindo nas ruas não justificava
qualquer medida mais incisiva do governo.
(...)
Como entender aquele tipo
de linguagem? A mulher não entendia...
Para as pessoas simples,
aquilo era o “linguajar do diabo”.
(...)
Nada não objetava
esse tipo de juízo... Inclusive manifestou que a ideia era a de fazer com que
ninguém compreendesse o que se passava ou o que era imposto pelo regime... Ele
garantiu que se aproximava o momento em que os próprios cidadãos falariam sem “encontrar
eco”... As linguagens se defrontariam... Os confrontos se acirrariam... Tudo se
encaminharia para o “silêncio da morte”.
(...)
Mas que tipo de justiça a mulher esperava?
Ninguém fez essa pergunta
para ela... Mesmo assim ela desabafou que o justo seria seus filhos não
passarem fome nem frio... O justo era garantirem a vida aos filhos. Quando eles
nasceram, havia o mar. E também a alegria sobre a terra. Não havia necessidade
de outras riquezas... Sonhava para os filhos apenas “o pão de cada dia e o sono
dos pobres”.
Ela prosseguiu dizendo que recusavam “o nada” aos
pobres... Jamais seriam perdoados!
Nada lhe deu um conselho: “Era preferível viver de joelhos a morrer de
pé”.
E como se estivesse a
proferir uma enigmática condição (aquela em que Peste é o governante supremo),
sintetizou que isso (viver com os joelhos dobrados) era necessário “para que o
universo encontre sua ordem medida pelo esquadro das potências, repartido entre
os mortos tranquilos e as formigas, de agora em diante, bem educadas – paraíso puritano,
privados de prados e de pão, onde circulem anjos policiais, de asas maiúsculas,
entre os bem-aventurados, saciados de papel e de nutritivas fórmulas, prosternados
diante do Deus condecorado, destruidor de todas as coisas e decididamente
devotado a dissipar os antigos delírios de um mundo delicioso demais”.
(...)
Delirando, Nada vaticinou que o “instante
perfeito” estava próximo.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-segundo_16.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto