quarta-feira, 14 de outubro de 2015

“Estado de Sítio”, de Albert Camus – segundo ato – Peste imprime uma limpeza e reordenação social em sua cidade; as pessoas terão de se contentar com as mudanças; o sistema é generoso e está atento às necessidades dos assalariados; o que não está previsto pelos regulamentos não pode tramitar; farta legislação, parca praticidade

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-segundo_14.html antes de ler esta postagem:

Vemos que Peste se ocupa de detalhes importantes para o bom andamento de sua administração...
Ele está no centro do palco ordenando que os “grandes trabalhos inúteis” sejam iniciados... Orienta sua secretária a preparar o “balanço das deportações e das concentrações”... Inocentes deviam ser transformados em culpados, pois isso aumentaria a mão-de-obra...
Pelo visto faltariam homens, já que muitos seriam deportados... É por isso que ele quis saber do “censo da cidade”.
(...)
A secretária respondeu que tudo estava sendo encaminhado... Parecia-lhe que “a boa gente” já havia compreendido o suficiente.
Peste a parabenizou... Todavia chamou-lhe a atenção por sua “ternura à flor da pele”... Para ele estava claro que aquela “boa gente” nada tinha compreendido... Mas isso também pouco importava, pois o que interessava não era exatamente que compreendessem, e sim que executassem.
O ditador se encantou com as próprias palavras e com o sentido que as palavras podiam ter... Esperava-se que, “executando”, as pessoas colaborassem com o sistema... Na verdade, agindo dessa forma, elas contribuíam com a sua própria “execução”.
(...)
Mulheres agitavam-se na portaria... O barulho interrompeu as reflexões de Peste, que pediu a uma delas que se aproximasse para manifestar o que pretendia.
A mulher quis saber onde estava o marido... Ele ainda não havia retornado para casa... Peste respondeu que ela não devia se preocupar porque certamente ele já teria encontrado uma cama.
Inconformada, a reclamante disse que o marido era “homem que se respeita”... Peste solicitou que a secretária tomasse conta do caso.
A mulher explicou que o marido se chamava Antônio Galvez... A secretária observou seus apontamentos e falou algo ao ouvido de Peste.
Galvez estava vivo... A esposa quis logo saber... A secretária respondeu que ele tinha “vida de castelo”... Peste esclareceu que o havia deportado com vários outros que “faziam muito barulho”.
A mulher perguntou o que havia sido feito de todos... Peste manifestou-se com irritação ao dizer que havia concentrado a todos porque “viviam na dispersão e na frivolidade”.
A pobre coitada dirigiu-se ao coro... Sua voz era de um lamento profundo... Mulher e coro pronunciavam que a miséria caíra sobre todos.
(...)
Na portaria, Nada e o primeiro alcaide tinham a tarefa de responder às dúvidas dos governados que estavam dispostos em filas.
Um cidadão disse que “a vida aumentou” e por isso os salários estavam insuficientes...
Nada respondeu que o governo sabia... Inclusive havia providenciado uma tabela que estava devidamente afixada... O tipo quis saber qual seria o aumento.
O que se ouve na sequência é o retrato do absurdo “simulacro de organização” sustentado em legislação e burocracia confusas.
Peste ”explicou” que, de acordo com a tabela 108:
“A portaria da revalorização dos salários interprofissionais e subsequentes traz a supressão do salário de base e a liberação incondicional dos escalões móveis, que recebem, assim, licença de reunir um salário máximo, que resta rever. Os escalões, subtração feita das majorações consentidas, ficticiamente, pela tabela número 107, continuarão, entretanto, a ser calculados, fora das modalidades propriamente ditas de reclassificação, sobre o salário de base precedentemente suprimido”.
O pobre homem, que apenas havia feito referência sobre o aumento do custo de vida e a desvalorização salarial, perguntou que espécie de aumento era aquele que Nada acabara de anunciar.
O dedicado funcionário respondeu que o aumento ficaria para mais tarde... Por ora tinham a tabela, e era o que bastava. O aumento constava da tabela!
Mas então, o que deviam fazer da tabela?
Irritado, Nada respondeu que deviam engolir o papel.
(...)
Sem perder tempo com as lamentações, Nada solicitou que outro cidadão se aproximasse... Ele já sabia que o tipo pretendia abrir um estabelecimento comercial, então o orientou a preencher um formulário e apertar os dedos contra uma almofada encharcada de tinta.
O homem quis saber onde poderia limpar os dedos tingidos... Nada pediu um instante para folear o regulamento... Então pôde responder que o dossiê não previa a situação, assim ele teria de ficar com as mãos sujas.
Isso foi demais...
O tipo insistiu que teria de se limpar... Nada esclareceu que pouco importava sua condição, principalmente porque perdera o direito de tocar a própria esposa... Restava-lhe humilhar-se perante as imposições da lei... Isso era “algo bom”.
Voltando ao assunto de interesse do cidadão, Nada perguntou se ele preferia “os benefícios do artigo 208, do capítulo 62, da 16ª circular, constante do 5º regulamento geral, ou a alínea 27, do artigo 207 da circular 15, constando para o regulamento particular”...
Evidentemente o homem não tinha a menor ideia daqueles “textos legais”... Nada respondeu que ele também não os conhecia... Já que era preciso definir uma opção, resolveu-se que o regime “beneficiaria” o proponente com os dois artigos.
O tipo nem sabia como agradecer... Mas logo se sentiu desapontado ao ouvir Nada dizer que um dos artigos concedia o direito de constituir a loja; o outro impedia que qualquer coisa pudesse ser vendida pelo estabelecimento.
E isso, o que significava?
Nada respondeu que se tratava da Ordem.
Leia: Estado de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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