Vemos que Peste se ocupa de detalhes importantes para o bom andamento de sua administração...
Ele está no centro do palco ordenando que os “grandes trabalhos inúteis” sejam iniciados... Orienta sua secretária a preparar o “balanço das deportações e das concentrações”... Inocentes deviam ser transformados em culpados, pois isso aumentaria a mão-de-obra...
Pelo visto faltariam homens, já que muitos seriam deportados... É por isso que ele quis saber do “censo da cidade”.
(...)
A secretária respondeu que tudo estava sendo
encaminhado... Parecia-lhe que “a boa gente” já havia compreendido o
suficiente.
Peste a parabenizou... Todavia chamou-lhe a atenção por sua “ternura à
flor da pele”... Para ele estava claro que aquela “boa gente” nada tinha
compreendido... Mas isso também pouco importava, pois o que interessava não era
exatamente que compreendessem, e sim que executassem.
O ditador se encantou com as próprias palavras e com o
sentido que as palavras podiam ter... Esperava-se que, “executando”, as pessoas
colaborassem com o sistema... Na verdade, agindo dessa forma, elas contribuíam
com a sua própria “execução”.
(...)
Mulheres agitavam-se na portaria... O barulho interrompeu as reflexões
de Peste, que pediu a uma delas que se aproximasse para manifestar o que
pretendia.
A mulher quis saber onde estava o marido... Ele ainda não havia
retornado para casa... Peste respondeu que ela não devia se preocupar porque
certamente ele já teria encontrado uma cama.
Inconformada, a reclamante disse que o marido era “homem que se respeita”...
Peste solicitou que a secretária tomasse conta do caso.
A mulher explicou que o marido se chamava Antônio Galvez... A secretária
observou seus apontamentos e falou algo ao ouvido de Peste.
Galvez estava vivo... A
esposa quis logo saber... A secretária respondeu que ele tinha “vida de castelo”...
Peste esclareceu que o havia deportado com vários outros que “faziam muito
barulho”.
A mulher perguntou o que
havia sido feito de todos... Peste manifestou-se com irritação ao dizer que
havia concentrado a todos porque “viviam na dispersão e na frivolidade”.
A pobre coitada
dirigiu-se ao coro... Sua voz era de um lamento profundo... Mulher e coro
pronunciavam que a miséria caíra sobre todos.
(...)
Na portaria, Nada e o primeiro alcaide tinham a tarefa de responder às
dúvidas dos governados que estavam dispostos em filas.
Um cidadão disse que “a
vida aumentou” e por isso os salários estavam insuficientes...
Nada respondeu que o governo sabia... Inclusive havia
providenciado uma tabela que estava devidamente afixada... O tipo quis saber
qual seria o aumento.
O que se ouve na sequência é o retrato do absurdo “simulacro de
organização” sustentado em legislação e burocracia confusas.
Peste ”explicou” que, de acordo com a tabela 108:
“A portaria da revalorização dos salários interprofissionais e
subsequentes traz a supressão do salário de base e a liberação incondicional
dos escalões móveis, que recebem, assim, licença de reunir um salário máximo,
que resta rever. Os escalões, subtração feita das majorações consentidas,
ficticiamente, pela tabela número 107, continuarão, entretanto, a ser
calculados, fora das modalidades propriamente ditas de reclassificação, sobre o
salário de base precedentemente suprimido”.
O pobre homem, que apenas havia feito referência sobre o aumento do
custo de vida e a desvalorização salarial, perguntou que espécie de aumento era
aquele que Nada acabara de anunciar.
O dedicado funcionário respondeu que o aumento ficaria para mais
tarde... Por ora tinham a tabela, e era o que bastava. O aumento constava da
tabela!
Mas então, o que deviam fazer da tabela?
Irritado, Nada respondeu
que deviam engolir o papel.
(...)
Sem perder tempo com as
lamentações, Nada solicitou que outro cidadão se aproximasse... Ele já sabia
que o tipo pretendia abrir um estabelecimento comercial, então o orientou a
preencher um formulário e apertar os dedos contra uma almofada encharcada de
tinta.
O homem quis saber
onde poderia limpar os dedos tingidos... Nada pediu um instante para folear o
regulamento... Então pôde responder que o dossiê não previa a situação, assim
ele teria de ficar com as mãos sujas.
Isso foi demais...
O tipo insistiu que teria
de se limpar... Nada esclareceu que pouco importava sua condição,
principalmente porque perdera o direito de tocar a própria esposa... Restava-lhe
humilhar-se perante as imposições da lei... Isso era “algo bom”.
Voltando ao assunto de interesse do cidadão, Nada
perguntou se ele preferia “os benefícios do artigo 208, do capítulo 62, da 16ª
circular, constante do 5º regulamento geral, ou a alínea 27, do artigo 207 da
circular 15, constando para o regulamento particular”...
Evidentemente o homem não tinha a menor ideia daqueles “textos legais”...
Nada respondeu que ele também não os conhecia... Já que era preciso definir uma
opção, resolveu-se que o regime “beneficiaria” o proponente com os dois artigos.
O tipo nem sabia como agradecer... Mas logo se sentiu
desapontado ao ouvir Nada dizer que um dos artigos concedia o direito de
constituir a loja; o outro impedia que qualquer coisa pudesse ser vendida pelo
estabelecimento.
E isso, o que significava?
Nada respondeu que se tratava da Ordem.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-segundo_15.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto