Dom Curzio Cellina sabia do hábito imposto pelo Santo Ofício Menocchio... E sabia também que o moleiro o usou por muito tempo, mas que estava disposto a solicitar às autoridades a dispensa daquele “estigma” porque o hábito se tornava um entrave... Por causa dele as pessoas o evitavam e pediam que se calasse quando falava da lua e das estrelas... O hábito tornava mais difícil conseguir algum contrato de trabalho...
(...)
Então, dado que Menocchio estava reduzido ao silêncio, não havia motivos
para investigações? Parece que a constatação era a de que ele “não representava
mais perigo para a fé dos seus concidadãos”... Tanto é que o Santo Ofício do Friuli,
que tinha uma decisão de interroga-lo em janeiro de 1599, desistiu do
procedimento.
(...)
Na mesma época em que
Menocchio teve a sua conversa com Lunardo (e nós sabemos que este tratou de
comunicar suas impressões a Gerolamo Asteo), aconteceu de o moleiro receber em
sua casa um “judeu convertido” chamado Simon, que vivia de pedir esmolas... Por
uma noite inteira os dois conversaram sobre temas religiosos... Menocchio
destampou a falar mal dos padres que “viviam no ócio”, e que era por isso que
escreveram os Evangelhos... Que Nossa Senhora havia tido dois filhos antes do
nascimento de Jesus, e que era por isso que José não queria se casar com ela...
E falaram sobre todos aqueles temas que Menocchio já havia conversado com o
violinista Lunardo (“negação da divindade de Cristo; recusa do Evangelho;
parasitismo do clero”...)...
Sabemos a respeito dessa conversa porque Simon falou
sobre ela quando foi chamado a depor... E ele disse que Menocchio falara a
respeito de um “livro lindíssimo”... O
convertido não viu o livro porque Menocchio já não o possuía, mas ele imaginou
tratar-se do Alcorão.
Ginzburg destaca que o interesse de Menocchio e de outros heréticos pelo
Alcorão talvez se explique pela
recusa do dogma da Trindade... Sabemos que, de acordo com o Islã, Deus é único... De qualquer modo,
não há como sustentar as palavras de Simon, que disse também que Menocchio
sabia que morreria por causa de suas ideias heterodoxas... E garantiu que o
outro só não fugia devido ao compromisso de seu compadre (Daniele de Biasio) de
observá-lo de perto depois que o Santo Ofício comutou a sua condenação quinze
anos antes... Em vez de “fugir para Genebra”, decidiu permanecer em
Montereale... E se morresse, os “luteranos” buscariam as suas cinzas...
Questão de improvável solução seria descobrir quem seriam esses “luteranos”
referidos por ele... Algum grupo clandestino? Alguém com quem conversara uma
única vez no passado?
É provável que Menocchio sofresse... E que também imaginasse fantasias...
Havia perdido a mulher e o filho Ziannuto, mortos... Simon revelou que o nosso
personagem não vivia uma boa relação com os demais filhos, que o consideravam
um estorvo...
Isso tudo à parte, Menocchio não tinha como se
livrar dos apaixonantes temas religiosos... Eles não o deixavam... Restava-lhe
permanecer... E aguardar o momento da chegada de seus perseguidores.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/07/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto