Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/05/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_23.html
antes de ler esta postagem:
O autor de Supplementum morreu em 1520... O texto
foi ainda reimpresso muitas vezes em língua vulgar depois disso... É bem
provável que o conteúdo que chegou às mãos de Menocchio tenha sido atualizado
por alguém desconhecido, já que ele deve ter lido ali sobre os acontecimentos
referentes à Reforma Religiosa iniciada em 1517, que aparece como o cisma de “Martinho,
conhecido como Lutero, frade da ordem dos ermitãos de Santo Agostinho”... Muito
provavelmente o editor tenha sido confrade de Foresti, ermitão como ele...
O texto condena a Reforma... Mas o seu início dá a entender que as intenções
de Lutero foram provocadas por erros de líderes da Igreja em relação aos
excessos das indulgências... Seu conteúdo tece críticas aos franciscanos que receberam autorização de Júlio
II e Leão X para pregar a respeito das indulgências. Foram aqueles franciscanos “homens
malignos que, debaixo de pretensa santidade, fizeram coisas novas e excessivas”
e teriam errado ao inflamarem seus discursos que escondiam seu interesse maior
que era o de possuir dinheiro e riqueza... Dessa maneira,
ainda de acordo com o texto, os frades “caíram em insânia e se tornaram causa de
grande escândalo devido às loucuras que pronunciavam pregando as indulgências.
Em outra parte da Cristandade, na Alemanha, eles se expandiram muito e, quando
diziam alguma loucura e alguns homens queriam repreendê-los (homens de
consciência e doutrina justas), imediatamente os declaravam excomungados. Entre
eles estava Martinho Lutero, o qual era de fato um homem culto e instruído”...
Somos tentados a crer que o maior problema apontado para
o início dos fatos que desencadearam o cisma tenha sido o modo como os membros da
ordem franciscana desempenharam-se equivocadamente... Foresti e seu continuador
certamente não pertenciam à ordem franciscana.
O texto segue elogiando Lutero e suas “puras intenções”, esclarece os
motivos de o mesmo ter encontrado apoio e aponta os resultados do movimento: “Depois
disso, o tal Martinho Lutero, que era de sangue muito nobre e tinha grande
reputação junto a todos, começou a pregar contra as indulgências, dizendo que
eram falsas e injustas. Em pouco tempo tinha revirado tudo pelo avesso. E, como
a maior parte das riquezas estava nas mãos dos clérigos, e havendo muito rancor
entre os estados espiritual e temporal, ele facilmente encontrou seguidores e
começou o cisma na Igreja Católica. Vendo que havia obtido amplo apoio,
separou-se por completo da Igreja romana e criou uma nova seita e um novo modo
de viver com suas muitas e diversas opiniões e fantasias. E isso foi o que
aconteceu a um grande número de países que se rebelaram contra a Igreja
Católica e não lhe devem obediência em coisa alguma”...
No trecho anterior verificamos a inspiração de Menocchio quando ele
pronunciou ao tribunal que “desejava que existisse um mundo novo e um novo modo
de viver, pois a Igreja não vai bem e não deveria ter tanta pompa”. Pode ser
que, de forma consciente (também pode ser que inconscientemente), o moleiro
reproduzisse como sua a representação do Lutero que interpretava no texto... Mas as ideias
religiosas do reformador não eram sustentadas por ele. Aliás, o texto tece
críticas ao radicalismo do cisma e atribui à "ignorância das pessoas" o fato de
as ideias luteranas terem encontrado quem as apoiasse. Ambiguamente o texto
conclui que as iniciativas contra a doutrina católica eram injustas, apesar de
todos os erros dos clérigos: “E desse modo cegara a plebe ignorante; e os que
tinham conhecimento e doutrina, ouvindo falar das más ações do estado
eclesiástico, aderiram, sem considerar que esta conclusão não é verdadeira:
se os clérigos e eclesiásticos levam uma vida degradada, a Igreja
romana não é boa; porque apesar de levarem uma vida degradada, a Igreja romana
é boa e perfeita; e, ainda que os cristãos levem uma vida degradada, a fé
cristã é boa e perfeita”...
De acordo com as palavras do próprio Ginzburg, o
texto de Foresti apresentou a Menocchio o “protótipo do rebelde religioso”... O
“povo ignorante” havia sido unido por ele e, assim, os que detinham a maior
parte das riquezas (“tudo pertence à Igreja e aos padres”) se curvaram... Pelo
menos nos “territórios localizados além dos Alpes, onde a Reforma foi vitoriosa”.
O mundo do moleiro, porém, era a realidade friulana da sua Montereale.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_19.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto