Aconteceu que no carnaval do ano anterior, Menocchio esteve em Udine, onde teve a oportunidade de conversar com um tipo que tocava violino e que já era um conhecido seu... Este era Lunardo de Simon, que também aproveitava as festividades para ganhar algum dinheiro tocando o seu instrumento... Ao saber sobre a “bula contra os heréticos”, Lunardo escreveu uma carta ao frade Gerolamo Asteo em que narrava o conteúdo da conversa que tivera com o “tocador de violão” na praça de Udine... Relatou que Menocchio deu a sua opinião negativa sobre história que corria acerca de opção de Lunardo em se tornar padre... Contou que Menocchio gozou da condição de pobreza a que ele se submeteria caso sua vocação se confirmasse e que ainda emendou dizendo que ninguém tem notícia de paradeiro de santos e eremitas, “ninguém sabe onde foram parar”...
A carta prosseguiu com citações que Lunardo Simon garantia ter ouvido de Menocchio... O “tocador de violão” dissera que “se fosse turco não ia querer se tornar cristão”; que “Deus é o pai de todo mundo e que pode fazer e desfazer”; que “turcos e judeus também acreditam, mas não que tenham nascido da Virgem Maria”... E ainda todas aquelas coisas referentes ao “fato de Jesus não ter descido da cruz” e “sobre padres e frades não terem o que fazer, e que inventam e escrevem certas coisas”... Obviamente Lunardo considerou Menocchio um tipo herético e perigoso.
Vemos que o nosso personagem voltou a falar e a defender suas antigas opiniões... Apesar de todo o processo, abjuração, cárcere e padecimento pelos quais passara, seu coração jamais renegara aquelas convicções...
A carta de Lunardo, por incrível que possa parecer, não gerou consequências imediatas... Apenas em 28 de outubro de 1598 é que os inquisidores, revisando papelada do Santo Ofício, começaram a relacionar os nomes Menocchio e Domenico Scandella... Gerolamo Asteo se tornou inquisidor-geral do Friuli e passou a recolher novas informações sobre Menocchio... E foi assim que ele ficou sabendo que Odorico Vorai, que no passado fizera a denúncia contra Menocchio e que resultou em sua prisão, havia sofrido perseguição implacável dos parentes do moleiro e sido expulso da pequena Montereale, onde era pároco... Asteo levantou em papéis (entre os quais, provavelmente, a antiga carta enviada pelo violinista Lunardo) a possibilidade de Menocchio ainda sustentar as mesmas falsas ideias do passado.
Asteo se dirigiu a Montereale e contatou o novo pároco Giovan Daniele Melchiori, de quem ouviu as notícias sobre Menocchio proceder contrariamente às disposições do Santo Ofício, ao não mais usar o hábito e ao retirar-se de Montereale com certa frequência... Nós bem sabemos que essa informação não era totalmente verdadeira... Isso à parte, em síntese, Melchiori respondeu que Menocchio se confessava e comungava, assim, tratava-se de “um cristão e um homem de bem”... O pároco nada sabia dizer sobre o que os demais habitantes pensavam dele e, por precaução, à frase “na minha opinião é um cristão e um homem de bem” acrescentou um “pelo que se pode ver exteriormente”.

Pelo menos na aldeia, Menocchio não ousava falar abertamente como no passado... Podemos mensurar a sua situação de isolamento... Na medida em que carregava o peso de sua condenação do passado, via-se sem condições, pelo menos em Montereale, de voltar a manifestar a sua “independência intelectual”... Cellina o via “conversando com muita gente”, então concluía que ele devia ser amigo de todos... O capelão de San Rocco não admitia que fosse amigo ou desafeto de Menocchio, apenas o tratava como os demais cristãos.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_6953.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto