quarta-feira, 26 de junho de 2013

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – a sentença; justificativa dos juízes; Menocchio representa perigo ao povo simples de Montereale; as heresias não eram “tão inéditas”; punição exemplar

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_25.html antes de ler esta postagem:

O moleiro entregou sua carta e os juízes se reuniram imediatamente para definir a sentença... Fizeram o réu reconhecer as contradições em que havia caído; desistiram de tentar convencê-lo sobre o “caminho certo”, e resolveram que ele deveria discorrer ainda sobre mais algumas questões como forma de montar o “quadro completo de suas aberrações”... Por unanimidade decidiram a sentença afirmando que Menocchio, além de herético formal, era um heresiarca (fundador de seita herética)... A sentença, promulgada a 17 de maio, foi muito maior do que as sentenças comuns de até então.
O Queijo e os Vermes cita vários trechos complicados contidos no documento elaborado pelo tribunal... Os termos em latim imputavam ao réu a condenação por ter falado sobre suas opiniões heréticas contra a fé católica, com o agravante de não ter se manifestado apenas aos religiosos, mas também às pessoas simples (non tantum cum religiosis viris, sede etian cum simplicibus et idiotis)... A sentença justificava que Menocchio era perigoso e, assim sendo, devia ser excluído da convivência dos camponeses e artesãos de Montereale...
Ginzburg reproduziu boa parte da exemplar sentença. Ela é tão significativa que perderíamos muito em não apresentar trechos selecionados. Os juízes expressaram toda a sua aversão às ideias e ousadia do moleiro, que só podiam ser obra de associação ao maligno:

(...) de tal forma obstinado nessas heresias; permaneceste com a alma insensível; negavas com atrevimento, ofendeste com palavras profanas e nefandas; afirmaste com espírito diabólico; não poupaste os santos jejuns; por acaso não vimos que ladraste também contra as santas palavras?; condenaste com teu julgamento profano; foi por influência do espírito maligno que ousaste afirmar; enfim tentaste com tua boca imunda; imaginaste essa coisa totalmente abominável; e para que nada permanecesse imaculado e que não fosse por ti contaminado (...) negavas; adulterando com tua língua maldita (...) dizias; enfim latias; colocaste o veneno; e o que é terrível que não só se diga mas se ouça; teu espírito mau e perverso não se contentou com essas coisas todas (...) mas levantou os seus cornos e, como os gigantes, te puseste a lutar contra a inefável Santíssima Trindade; o céu se espanta, tudo se conturba e estremecem os que ouvem as coisas tão desumanas e horríveis que com tua voz profana falaste de Jesus Cristo, filho de Deus.

O trecho da sentença apresenta as duras críticas contra Menocchio. Entretanto podemos dizer que há exagero em relação ao juízo de que as heresias por ele praticadas fossem “inéditas” para os inquisidores… Eles estavam acostumados a tratar dos mais diversos processos na região do Friuli contra luteranos, bruxas, benandanti, blasfemadores, anabatistas… As convicções do réu sobre as confissões diretas a Deus eram conhecidas dos seguidores da Reforma; as autoridades relacionaram a citação de Menocchio sobre o caos às ideias de “um antigo filósofo, não nomeado”; à máxima de Menocchio sobre Deus ser autor do Bem e de tudo o que é bom (e o diabo autor do mal), os inquisidores justificaram que ele retomava os princípios dos maniqueus; em relação à sua opinião de que todos se salvam (cristãos, judeus, turcos…), os religiosos afirmaram que o moleiro resgatava a heresia de Orígenes…
De modo implacável, o registro esmagava as esperanças de Menocchio em uma misericordiosa absolvição: “o que todos admitem e ninguém ousa negar, tu, a exemplo do tolo, ousaste dizer: ‘Deus não existe’ (…)”.
Ginzburg ressalta que algumas referências sobre as ideias dos maniqueus e de Orígenes podem ter sido lidas por Menocchio no Supplementum supplementi delle croniche (de Foresti), mas adverte que os religiosos exageraram ao considerar que aquelas doutrinas e fundamentos embasaram suas convicções…
Mais uma vez o autor destaca o “fosso” que separava a cultura do acusado da das autoridades…
Ao final vemos Menocchio condenado a abjurar em público a todas as suas ideias heréticas… Isso era fundamental para o seu “retorno à Igreja”, mas, além disso, teria de cumprir penitência encarcerado, usar um hábito marcado com a cruz “pelo resto da vida”… Sobreviveria às custas dos esforços de seus filhos.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_5031.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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