domingo, 23 de junho de 2013

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – o país de Bengodi, suas características para lá de bizarras; Anton Francesco Doni e seu “Um Mundo Novo”; poemas sobre um “novo tempo”; mudanças na perspectiva em relação ao futuro

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_21.html antes de ler esta postagem:

Há o mito do país de Bengodi, que exagerava em relação às situações ridículas, absurdas e cômicas... Um “utopismo primitivista” que apresentava aberrações como a das corujas que defecavam casacos ou a dos asnos amarrados com salsichas... O Queijo e os Vermes cita um trecho que se mostra exemplar no que tange a comicidade daquele conteúdo:
Se alguém quiser ir lá, ensino a rota:
embarque em Mameluco, que é o porto,
depois navegue em mar só de lorota
e quem lá chegue é rei de todo corno.
Em Mondi, de 1552, Anton Francesco Doni apresentou uma utopia de conteúdo sério no diálogo Um Mundo Novo... Ali, o ambiente ilustrado é urbano e bem diferente dos citados anteriormente. Sobre este Doni, destaca-se que ele publicou Utopia, de Thomas More...
Doni apresentou o traçado de sua cidade no formato de uma estrela, em seu centro havia o templo... Seus habitantes se revelavam sóbrios e não se empanturravam em comilanças de “seis horas à mesa”... As características básicas da convivência do lugar eram inspiradas nos relatos dos viajantes... E, em comum com as narrativas sobre a Cocanha, notava-se a relevante comunhão de bens e das mulheres... A ambiguidade da expressão “um mundo diverso deste” possibilitava interpretar uma sociedade organizada em ambiente (espacial) inacessível, no futuro...
Retomando as afirmações de Menocchio sobre sua crença na ideia de diferentes povos (“tantas espécies de raças humanas...”) terem sido criados em diferentes partes do mundo, torna-se bem provável que ele tenha tomado conhecimento das notícias sobre a América idílica no Supplementum, de Foresti. Embora, ali, as alusões sobre “as descobertas americanas” sejam minguadas... Ao que tudo indica, o “mundo novo, citadino e sóbrio” de Doni não era conhecido pelo moleiro... Já em relação à festiva Coconha, seria mais que razoável ele compartilhar das ideias contidas no Capitolo e em outros textos.
Ginzburg destaca que os dois modelos citados anteriormente continham elementos que podiam embasar o pensamento de Menocchio em torno de um “novo mundo”... Na cidade de Doni a religião não apresentava ritos ou cerimônias (apesar do lugar de destaque do templo)... Vimos que o moleiro manifestou o desejo por uma religião simplificada voltada ao conhecimento e gratidão a Deus e o amor ao próximo; a felicidade, fartura e ausência do trabalho na Cocanha sem dúvida representavam atrativos aos laboriosos camponeses de vida de muitos sacrifícios.
De fato, Menocchio disse algo sobre não se ingerir vinho “para que os humores não caíssem”... E também condenava os hábitos de frades que, numa refeição, comiam “o que não conseguiriam em três”... As injustiças sociais de seu tempo eram marcadas pelos dias de fome que os muito pobres sofriam.
O conhecido poema Lamento de uno poveretto uomo sopra la carestia é citado... Seu teor tem tom de protesto, pois é de contraposição àquela condição:
Escavo a terra buscando
raízes várias e estranhas
com que untamos os focinhos:
fosse assim toda manhã
e bem menos mal seria.
Coisa triste é a carestia.
As palavras de Menocchio sobre o paraíso (“é como estar numa festa”) bem podem ter sido inspiradas nas fantasias narradas sobre a Cocanha, nesse Lamento e também em L’universale allegrezza dell’abondantia (outro conhecido poema):

Gozemos, façamos festa, / todos nós em companhia, / que após a ímpia carestia / não nos dê mais sofrimento... / Viva o pão e viva o trigo, / viva a riqueza e a abundância, / vamos cantar, pobrezinhos, / pois é chegada a esperança... / Após trevas bem a luz, / depois do mal vem o bem, / a riqueza nos conduz / e nos salva do perigo; / trigo seco traz consigo / pois só nos mantemos com o belo pão branco e bom.

A mensagem contida aí, os relatos sobre a Cocanha e outras “realidades ideais” (que bem poderiam estar do outro lado do oceano), davam perspectiva diferente ao futuro, que passava a ser “menos escatológico”: “Não o Filho do Homem no alto, sobre as nuvens, mas homens como Menocchio – os camponeses que ele tentara inutilmente convencer, por exemplo -, através de sua luta, deveriam ser os mensageiros do ‘novo mundo’”.
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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