As notícias sobre o “novo mundo” descoberto pelos navegantes trazia todo tipo de expectativa e imaginação... O conceito (“novo mundo”), tal como o referido por Menocchio, já vinha sendo pensado há algum tempo... Temos a citação de carta de Erasmo (em 1527, a Martim Butzer) em que fez referência aos levantes que ocorreram ao tempo da Reforma e que tinham como característica “tumultuar a tradição”... Destacava-se que seria importante buscar o entendimento junto aos príncipes e bispos para que as modificações ocorressem mais lentamente e sem traumas. Mas as agitações religiosas pareciam inflamar ideais de transformações e de superação da tradição, “como se um mundo novo pudesse ser criado instantaneamente”.
A literatura acabou fomentando utopias como a do país da Cocanha. O anônimo Capitolo, qual narra tutto l’essere d’ um nuovo, trovato nel mar Oceano, cosa bela, et delettevole foi impresso em meados do século XVI (e circulou na região de Modena) apresentava apenas uma entre tantas visões da Cocanha, ambiente de realidade completamente diferenciado da dura vida dos camponeses europeus. A Cocanha era reconhecida na tradição oral por possibilitar uma existência repleta de prazeres e livre de atribulações.
Havia muitas variações sobre o que se podia vivenciar na Cocanha. O Queijo e os Vermes cita alguns trechos do Capitolo que relacionam a Cocanha aos eventos que marcaram as “descobertas marítimas”:
Navegantes
do Mar Oceano acharam
há
pouco tempo um divinal país,
um
país jamais visto nem ouvido.
É claro que a idealização percebida na utopia deve ser entendida como
realidade inversa a que os camponeses vivenciavam. Daí as descrições (muitas
vezes bizarras) sobre a fartura do lugar:
Uma montanha de
queijo ralado
se vê sozinha em meio
da planura,
e um caldeirão
puseram-lhe no cimo...
Um rio de leite nasce
de uma grota
e corre pelo meio do
país,
seus taludes são
feitos de ricota...
E que tipo de governo um país assim constituído teria? A autoridade
ficava a cargo do “rei Bugalosso” que, em vez de impor ordem e obrigações aos
que normalmente labutariam, era um glutão grosseiro tal como os mais simples do
lugar... Um “comilão” de péssimos modos, que defecava maná, cuspia marzipã e
tinha a cabeça repleta de peixes (em vez de piolhos)... Como se vê, uma
aberração.
Isso à parte, o “mundo novo” também não reconhecia as instituições a que
todos se submetiam na realidade. O texto revela que em Cocanha a liberalidade
sexual era total... Certamente as narrativas acerca da nudez indígena feita
pelos “cronistas navegantes” levavam muitos (e certamente muitos camponeses) a
imaginarem um país em que homens e mulheres passavam nus o tempo todo... E nem
mesmo havia condições climáticas adversas que pudessem prejudicar esse
comportamento... Assim, durante o dia ou à noite seus habitantes podiam se
tocar uns aos outros... E podiam-se ter filhos à vontade porque não havia
nenhuma dificuldade em alimentá-los... O texto garantia que “quando chove, caem
raviólis do céu”.
Certamente o “mundo novo” expresso no país da
Cocanha chamava a atenção dos camponeses europeus (também) porque as mazelas
que tão bem conheciam não faziam parte de sua descrição... Em Cocanha ninguém
tinha necessidade de trabalhar, e tudo era dividido entre todos... Não havia
divisão entre “os da cidade” e “os do campo”... Todos viviam como ricos e satisfeitos
devido à abundância do que necessitavam para gozar a boa vida. Já que tudo o
que desejassem estava à mão, não havia pobres... Apenas os que ousassem falar
de trabalho é que mereciam condenação à morte na forca.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_23.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto