Talvez
seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_22.html antes de ler esta postagem:
Menocchio andou
dizendo que se quisessem que ele ensinasse a “estrada verdadeira”, deveriam
“trilhar o caminho” de seus (dele) antecessores e “seguir o que a Santa Madre
Igreja ordena”. Isso é o que declararam em depoimentos por ocasião ainda do primeiro
processo... Mas ele não procedia conforme a máxima que “ensinava”. Bem o
contrário era o que se verificava, pois dele seus contemporâneos verificavam o
afastamento da fé, a recusa das pregações do pároco e doutrina da Igreja. As
questões que Ginzburg nos leva a refletir são de “ordem epistemológica”: O que
o tornava tão seguro de suas convicções? Em nome do quê falava?
Um
levantamento das explicações, que ele mesmo deu quando interrogado pelos
inquisidores, permite verificar que num primeiro momento ele creditou à
tentação de “espírito maligno” que o levava a crer “naquelas coisas”... Depois
declarou não saber se sua inspiração vinha de Deus ou do demônio... E ainda que
“o diabo ou outra coisa qualquer o tentava”... Finalmente, talvez tentando
definir melhor o que poderia ser essa “outra coisa”, assumiu que suas opiniões
saíam de sua própria cabeça.
Ginzburg
destaca que neste ponto Menocchio diferenciava-se de outros que (entre o fim do
século XIV e início do XV) falavam sobre assuntos religiosos, procedimentos
eclesiásticos e até de “revelações” que ostentavam conhecer graças à
“iluminação” que recebiam... O livro cita o caso de um ex-beneditino, Giorgio
Siculo que em 1550 pretendia apresentar “verdades” (transmitidas a ele pelo
próprio Cristo em pessoa) aos padres reunidos em Trento... Esse não era o caso
de Menocchio... A afirmação de que as opiniões “saíam de sua própria cabeça”
confere-lhe “racionalidade”.
E havia também, produto dessa racionalidade, a
inspiração em determinados textos a que teve acesso. O Queijo e os Vermes apresenta o exemplo em que ele relata ter
conversado com o padre de Barcis sobre a virgindade de Maria... Na ocasião, ele
justificava suas indagações a partir da reflexão sobre não conhecer nenhum
nascimento que tenha ocorrido de mulher virgem... Argumentava que havia lido em Fioretto della Bibbia “que a Gloriosa
Virgem se casara com São José” (...) que “chamava Nosso Senhor Jesus Cristo de
filhinho.”
O
vigário-geral mandou revistar a casa de Menocchio para apreender livros proibidos,
mas os volumes que encontraram não eram condenados. O Queijo e os Vermes apresenta uma lista de livros com os quais ele
deve ter feito algum contato e leitura (foram citados em seu primeiro
processo). São eles: * a Bíblia em
vulgar; * Fioretto della Bibbia
(“crônica medieval catalã”, composta pela mistura de várias fontes, como a Vulgata, o Chronicon de Isidoro, o Elucidarium
de Honório d’Autum, e evangelhos apócrifos... Teve grande circulação entre os
séculos XIV e XV, com cerca de vinte edições); * Il Lucidário (ou Rosário? Conforme o próprio Ginzburg) della Madonna – de considerável
circulação durante o século XVI; * Il
Lucendario (o correto, ainda segundo o autor, seria Legendario de Santi, de Jacopo da Varagine); * Historia del Giudicio (“poeminha anônimo” do século XV); * Il cavallier Zuanne de Mandavilla
(reimpresso até o final do século XV, livro de viagem atribuído ao
fantasmagórico sir John Mandeville);
* Il sogno dil Caravia (que Menocchio
conhecia como Zampollo).
Do
segundo processo: * Il supplimento dele
cronache (uma tradução em vulgar da crônica escrita pelo ermitão bergamasco
Jacopo Filippo Foresti); * Lunario al
modo di Italia calculato composto nella città di Pesaro dal eccmo dottore Marino Camilo de
Leonardis; * uma edição
censurada do Decameron de Boccacio;
um livro sem definições específicas que Ginzburg supôs ser o Alcorão (em 1547 havia saído uma
tradução italiana).
Depois
da apresentação dessa lista, O queijo e
os Vermes trata de como os livros teriam chegado até o moleiro. O Fioretto della Bibbia é o único que ele
comprou. Tomaso Mero da Malmins presenteou-o com oSupplementum... Historia Del
Giudicio, Lunario e aquele que
Ginzburg supôs ser o Corão eram
materiais que não se sabe como Menocchio tomou conhecimento... Os demais livros
(num total de seis) chegaram a ele através de empréstimos de pessoas comuns da
aldeia e locais onde viveu... O Lucidario
(ou Rosário?) foi emprestado por Anna de Cecho durante o exílio em Arba (1564).
O filho dela, Giorgio Capel foi chamado a depor no caso Menocchio e declarou
possuir La vita de santi; vários
outros títulos que possuía foram confiscados pelo pároco de Arba e recebeu
apenas dois ou três de volta, pois os demais seriam queimados pela Igreja.
Domenico Gerbas, tio de Menocchio, o emprestou a Bíblia e o Legendario de
santi... O Legendario desapareceu
depois de molhado... Bastian
Scandella, primo de Menocchio, ficou com a Bíblia
por algum tempo e a emprestou para ele em algumas ocasiões, mas aconteceu de
Fior (mulher de Bastian) se apropriar do livro para queimá-lo... O moleiro
lamentou o ocorrido, e isso merece destaque porque sabemos de outra opinião sua
em que considerava a Bíblia como um
livro de batalhas como outro qualquer.
Mandavilla foi livro que chegou a Menocchio através do padre
Andrea Bomina, de Montereale... O religioso havia conseguido este texto em Maniago...
Por ocasião de seus depoimentos, o padre afirmou que o moleiro havia recebido o
livro por empréstimo de Vincenzo Lombardo (que poderia ter pegado de sua casa).
Il
sogno dil Caravia
foi emprestado por Nicola da Porcia (de Melchiori?). Também de Nicola, por
intermédio de Lunardo della Minussa, Menocchio teve acesso ao Decameron... Sabe-se que ele emprestou o
seu Fioretto a um moço de Barcis,
Tita Coradina... Este aí queimou o livro por ouvir do pároco local que se
tratava de livro proibido.
Ginzburg destaca o fato de notar que havia mesmo um
círculo de leitura na pequena Portoreale e proximidades. Conta que em Udine foi
criada uma escola (sob a orientação de Gerolamo
Amaseo) que ensinava a todos sem discriminação e sem cobrar nada... Pouco se sabe
sobre das condições econômicas dos leitores, mas é certo que graças ao censo de
1596 pode-se afirmar que Bastian Scandella possuía muitos terrenos... Sobre
Nicola da Porcia, O Queijo e os Vermes
fez algumas considerações, mas a maioria que aparece nos processos são apenas
nomes... Os livros, pelo menos na região, era objeto muito comum também entre
camponeses... Os livros eram frágeis (podiam desaparecer se fossem molhados) e podiam ser objeto de violenta perseguição.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto