segunda-feira, 22 de outubro de 2012

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – um certo Nicola da Porcia – ou Melchiori – e sua influência sobre Menocchio; Caravia, Zampollo e Taiacalze num texto de 1541

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_17.html antes de ler esta postagem:

Os inquisidores insistiam em saber se Menocchio chegara àquelas ideias de modo tão autônomo como ele mesmo afirmava. Às testemunhas, as autoridades perguntavam se ele falava sério ou se “imitava alguém”. Em 1598, dom Otavio Montereale, o mesmo que acionara o Santo Ofício para que o caso do moleiro fosse verificado, afirmou que tinha escutado do próprio Menocchio que ele havia sido iniciado naqueles assuntos por um pintor de Porcia chamado Nicola... Os dois se conheceram na ocasião em que o pintor trabalhou na casa do senhor De Lazzari (cunhado de dom Ottavio).
Sobre esse Nicola, Menocchio falou, por ocasião do processo em 1584, que o encontrou na época da quaresma e que ouviu dele que jejuava não por convicção religiosa, “mas por medo”... Mas não há maiores detalhes sobre este contato com o pintor. Menocchio falou algo sobre um livro que Nicola possuía, e ficou nisso. O Santo Ofício intimou Nicola, mas logo o dispensou graças a documentos religiosos que atestavam sua boa conduta em Porcia.
Em 1599 Menocchio respondeu que há uns quinze ou dezesseis anos tinha a convicção de que qualquer homem, seguindo seus costumes e leis, poderia se salvar independentemente de ser ou não cristão... Isso seria uma influência de um dos contos do Decameron... O moleiro disse que simplesmente “começou a pensar e o diabo meteu-lhe a ideia na cabeça”... As autoridades perguntaram com quem ele havia começado a pensar e ouviram que ele mesmo não sabia.
(...)
Então Menocchio teria conversado sobre religião por volta de 1583... O Queijo e os Vermes mostra que na oportunidade teria lido o Decameron graças ao empréstimo daquele com quem dialogava... Algum tempo depois, durante o processo de 1599, Menocchio citou o nome de Nicola de Melchiori, mas as autoridades não relacionaram seu nome ao de Nicola da Porcia... Dom Ottavio tinha certeza de que este era o elo entre Menocchio e as ideias heréticas.
Sobre este Nicola, o livro cita o esclarecimento do nobre pordenonense chamado Fulvio Rorario, para quem ele era um “grande herético”... Em 1571, Rorario descrevia um episódio de anos passados em que o próprio Nicola contava que quebrara estatuetas de uma igrejinha porque eram “malfeitas” e não passavam de mercadorias... De fato, tal opinião combina com o juízo de Menocchio sobre imagens sacras.
Com Nicola, o moleiro também teve a oportunidade de conhecer um livro chamado Zampollo... Sobre esse livro afirma-se que muito marcou Menocchio e seus pensamentos. Tanto é que depois de muito tempo ainda se lembrava de certas passagens (temas e expressões). O texto narra que Zampollo (um bufão) morreu e foi para o inferno... Divertiu-se com demônios  e era tratado por “compadre” por um deles (Farfarello), que o aconselhou a “ser sempre do contra” e, para isso, dizer sempre a verdade “sem respeitar nada”, pois até no inferno seria necessário “ser um homem de bem”.
Por equívoco, Menocchio substituía o nome do protagonista Zampollo pelo título Il sogno dil Caravia... Esta parte do livro, O Sogno, conta mais ou menos o seguinte: O joalheiro Alessandro Caravia, compadre de Zampollo Liompardi, estava entristecido... Vê-se a gravura Melancolia, de Dürer, decorando o frontispício... É Zampollo que diz para o angustiado Caravia que este se assemelha à Melancolia “pintada por um bom mestre pintor”... E o conforta afirmando que “a verdadeira vida não se vive nesta terra”... Caravia diz que gostaria de conhecer notícias da realidade do “pós-morte” trazidas por “alguém que se encontrasse no outro mundo”... Zampollo prometeu que o visitaria depois que morresse...
E a narrativa, em forma de poema, conta que ele fez isso mesmo... E quando teve a oportunidade, revelou suas viagens ao Paraíso e ao inferno... Contou que fez muitas palhaçadas e que esteve com São Pedro e com outro bufão, Domenego Taiacalze, que o orientou sobre como poderia aparecer a Caravia... A ideia era aparentar grande desconsolo e Farfarello, que o queria bem, atenderia o seu desejo... Mas aconteceu que Zampollo antecipou-se e quis ter com Farfarello antes que esse o procurasse... O demônio descobriu a estratégia do compadre, e o advertiu que mesmo no inferno era preciso manter promessa... Perdoou-o e permitiu que fizesse sua aparição... Caravia o vê e “se ajoelha diante de um crucifixo para rezar”.
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Sobre este Sogno, Ginzburg esclarece que havia sido publicado em 1541, num momento de conversação (em Ratisbona) para trazer paz entre católicos e protestantes... Trata-se de “uma típica voz do evangelismo italiano”... Menocchio apropriara-se de trechos em que interpretava que (mesmo no inferno, com Farfarello) deve-se respeitar a palavra dada e a verdade... Assim fundamentava suas certezas nas críticas à hipocrisia de frades.
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Voltando ao Sogno, no “tribunal de Belzebu”, Zampollo e Taiacalze dançam de modo extravagante e obsceno... Ao mesmo tempo discursam sobre temas religiosos... Em O Queijo e os Vermes lemos alguns fragmentos em que notamos o elogio a Lutero, ao mesmo tempo em que as autoridade eclesiais (Paulo III e Clemente) são apresentadas como vacilantes em relação aos temas da Reforma e ao Concílio, que deveria tratar das questões religiosas levantadas por Lutero... Há a participação de São Pedro que, num determinado trecho, também faz a defesa da primazia do “puro Evangelho”, do amor devotado a Deus, da crença em Cristo redentor e no Espírito Santo...
O texto levava os cristãos ao aprendizado de uma religiosidade mais simples... Para que pessoas comuns não fossem enganadas... Os frades deveriam “pregar o puro Evangelho” em vez de confundir os cristãos... O trecho em questão no parágrafo anterior, apresenta uma referência à predestinação, tema que Menocchio manifestou desconhecer... Mas as diversas relações que fez entre Sacramentos e mercadoria estão todas em signieffi, ceffi e visi storti... Caravia representa aqueles que esperavam o entendimento religioso entre os que divergiam (papistas e luteranos), mas o Concílio que ocorreu definiu apenas condenações...
O Queijo e os Vermes leva em conta que talvez Menocchio tenha lido o Sogno com a perspectiva de uma mudança religiosa para o futuro... Mas há certos juízos expressos por ele nos depoimentos que não constam naquela literatura... Um exemplo é o da “negação da divindade de Cristo”... Mas então, de que forma o moleiro teria apreendido tais convicções? Haveria a possibilidade de o seu mentor ter sido mesmo Nicola da Porcia (se este era também Nicola Melchiori)... Não se sabe quando os dois teriam se conhecido... Ginzburg nos alerta sobre depoimentos que atestam que Menocchio defendia aquelas ideias muitos anos antes do primeiros processo (1584).
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_26.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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