terça-feira, 21 de dezembro de 2021

“1984”, de George Orwell - a cópia do documento fotográfico provocou grande inquietação em Winston; O’Brien a fez evaporar no “buraco da memória” e, atuando a partir do “duplipensar”, manifestou que ela jamais havia existido; uma discussão a respeito da memória e existência do passado; o Partido que controla as memórias, controla também o passado; sob a ameaça do dispositivo que aumentava a dor, Winston teve de ouvir que agira errado ao não ter cumprido a disciplina e a submissão ao regime; devia entender que não há realidade externa, só a que existe no espírito

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-obrien-da-inicio.html antes de ler esta postagem:

Winston viu a fotografia que O’Brien segurou por alguns segundos diante de seus olhos... Não havia dúvida de que só podia ser uma reprodução daquela que ele havia destruído. O tipo a escondeu, mas estava certo de que havia visto o documento perturbador. Não foi por acaso que tentou se livrar das amarras que o prendiam à cama. Instintivamente queria pegar a fotografia, mas sabia que isso não lhe seria permitido.
Não segurou a agitação e exclamou a surpresa por saber que a prova ainda existia. O’Brien respondeu negativamente e deu alguns passos pela sala até chegar a um “buraco da memória” instalado na parede e introduziu a fotografia para que fosse sugada e evaporada pela corrente de calor. Disse que ela se transformara em cinza, nada que pudesse ser identificável, uma pequena porção de pó... Desse modo, o rapaz estava errado já que a fotografia não existia e tampouco existira em algum momento.
Winston agitou-se e ousou dizer que viu o documento... Assim, ele “Existiu! Existe! Existe na memória!”. Era certo que se lembrava! E que O’Brien também não podia dizer o contrário!
O’Brien o ouviu sem lhe dar razão, já que respondeu que não se lembrava de ter visto o documento...
(...)
Winston sentiu o coração disparar ao mesmo tempo em que constatava que a reação do outro se relacionava ao “duplipensar” e se assim era não teria qualquer possibilidade de falar a respeito de evidências. Ele mesmo não tinha convicção de que O’Brien estivesse mentindo. Nesse caso, por mais absurdo que pudesse ser, teria se esquecido da fotografia e do que havia feito com ela. Sendo assim, também teria “esquecido sua negativa de se lembrar, e esquecido o esquecimento”.
Em seu íntimo, não tinha como admitir que o homem estivesse dramatizando um embuste... Sentiu-se impotente diante da possibilidade sinistra e disparatada. Era com gente afinada à ideologia que os acusados tinham de lidar. O’Brien permaneceu a observá-lo com atenção e, certamente adivinhando o seu raciocínio, adotou ares de tutor dedicado ao pupilo que tem potencial apesar de vacilar diante de certas tentações.
Pediu ao Winston que repetisse o lema do Partido a respeito do “controle do passado”. Sem perder tempo, ele pronunciou: "Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado". O tipo repetiu a última parte e balançou a cabeça como a dizer que aprovava o a resposta. Na sequência perguntou se “o passado tem existência real”.
O rapaz percebeu a gravidade da pergunta e sentiu-se ameaçado... Não por acaso olhou para o dispositivo que podia aumentar sua sensação de dilaceramento e dor. O que devia responder? Sequer sabia o que pensava ser a verdade!
(...)
Ao notar seu embaraço, O’Brien sorriu e sentenciou que faltava metafísica ao rapaz e que sequer refletira a respeito do significado de “existência”. Na sequência procurou esmiuçar o que pretendia saber... Perguntou se ele achava que “o passado existe concretamente no espaço” e se “existe em alguma parte um mundo de objetos sólidos onde o passado ainda acontece”.
Winston negou. Então o outro quis saber onde o passado existe e fez a pergunta deixando claro que não concordava que se pudesse obter alguma resposta, pois não aceitava que o passado existisse realmente. O rapaz arriscou dizer que o passado está “nos registros; está escrito”.
O’Brien insistiu que lhe dissesse onde mais estaria o passado... Winston respondeu que “na memória dos homens”. Isso não foi refutado, todavia o tipo observou que o Partido controlava todos os registros e memórias e, sendo assim, controlava o passado.
Winston arriscou questionar a respeito de como poderiam impedir que ele e as demais pessoas se lembrassem. Acrescentou que se tratava de algo “involuntário”, que sempre esteve “fora do indivíduo”... Poderiam mesmo controlar a memória? Fez essa pergunta e emendou que pelo menos a dele não tinham conseguido controlar.
Não há dúvida de que essa exaltação não tinha levado em consideração o dispositivo que podia submetê-lo a dores mais intensas... O’Brien encheu-se de cólera e levou a mão ao mostrador. Mas não o acionou de imediato e em vez disso respondeu que o próprio Winston não controlou a memória e que, exatamente por ter fracassado na disciplina e na humildade, estava detido no momento.
O tipo continuou a vociferar que a prova da sanidade estava na postura submissa, algo do qual Winston havia se afastado, preferindo tornar-se um “lunático” e “minoria de um”. Salientou que para se “enxergar a realidade” é necessário possuir uma “mente disciplinada”. Disparou que o rapaz entendia a realidade como “algo objetivo, externo, que existe de per si” e que a mesma possui uma natureza evidente.
Na sequência avançou em seu discurso sentenciando que Winston se iludia e pensava enxergar as coisas adequadamente, imaginando que todos os demais viam o mesmo. Neste ponto o criticou severamente afirmando que “a realidade não é externa”, já que “só existe no espírito” e mais em nenhum lugar. De modo algum a mente do indivíduo era local privilegiado da realidade, pois ali ocorrem enganos e “logo perece”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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