Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-avaliacao-clinica.html antes
de ler esta postagem:
O’Brien começou a fazer uma série de perguntas
que nada tinham a ver com a problematização da “liberdade de se escrever (ou
dizer) que dois e dois são quatro”. Perguntou ao Winston se ele tinha ideia de
há quanto tempo estava no Ministério do Amor e o que pensava que o Partido
queria quando transferia as pessoas para aquelas instalações...
Vimos que Winston não
tinha a menor ideia de há quanto tempo vinha passando por interrogatórios
marcados por torturas psíquica e física. Em relação às motivações do regime ao
encaminhar pessoas ao Ministério, disse que o Partido pretendia coletar
confissões a respeito dos crimes que elas cometiam. O’Brien observou que não
era por este motivo e pediu a ele que refletisse sobre outra possível causa.
Depois de algum tempo, o rapaz respondeu que podia ser para punir os
infratores da ordem. Não! Ouviu a exclamação ríspida e entusiasmada... Que
ficasse sabendo que não se tratava apenas de obtenção de confissões e punições.
(...)
O’Brien
parecia empolgado ao falar a respeito do processo que ele entendia como
perfeito e bem engendrado pelo Partido. Explicou que tipos como Winston eram
levados àquele lugar para que fossem curados da loucura. Emendou que ninguém
que chegava às instalações do Ministério do Amor depois de capturado saía sem
passar com êxito pelo processo de cura.
Era preciso entender
que o Partido não estava interessado “nos estúpidos crimes” como os que ele
havia cometido. O “ato físico” de nada valia! Ao regime interessava os
pensamentos dos que cometiam a imprudência da sedição. No final das contas, a
intenção era destruir os inimigos do IngSoc, mas, mais que isso, buscava-se
modificá-los... Será que Winston podia entender isso?
Foi
o que O’Brien perguntou enquanto mantinha o rosto próximo ao do rapaz... Este o
ouvia e analisava a feiura do poderoso membro do Partido Interno. Reparava seu
fanatismo em relação à ideologia do IngSoc. A convicção exacerbada o fazia
sentir-se apequenado a ponto de desejar apenas desaparecer no parco acolchoado
da cama. O que poderia responder? Seu pensamento focava somente a possibilidade
de a alavanca ser acionada novamente a qualquer momento.
(...)
Mas aconteceu que
O’Brien virou-se para o lado oposto e começou perambular pela sala. Depois de
alguns passos voltou a falar a respeito do programa que a repressão desenvolvia
no Ministério do Amor. Disse que ali não ocorriam martírios... E para se fazer
entender, passou a destacar o conhecimento acerca da Idade Média, algo ao qual
sabia que Winston tivera acesso.
Salientou que as
inúmeras perseguições religiosas promovidas pela inquisição haviam sido um
fracasso, já que pretendiam pôr fim às heresias e no entanto elas acabaram se
perpetuando... Os tribunais enviavam hereges às fogueiras e isso parecia
funcionar como propaganda, pois milhares de outros surgiam na sequência. Por
que isso ocorria?
A pergunta de O’Brien era retórica e logo ele se pôs a explicar que as
execuções ordenadas pela inquisição eram abertas. Além disso, os condenados
eram eliminados antes que se arrependessem... A rigor, dizia-se que eram
executados exatamente porque não haviam “confessado tudo” ou porque não
manifestavam arrependimentos. Acabavam mortos por não renegarem as heresias que
haviam abraçado. Isso gerava uma reação contrária à que se esperava, já que para
muitos o condenado devia ser exaltado enquanto os inquisidores se tornavam motivo
de vergonha.
(...)
O’Brien falou ainda a respeito das perseguições promovidas por nazistas
e russos durante o século XX. Em relação a esses últimos, garantiu que eram
mais cruéis do que a inquisição e que haviam percebido a importância de não permitir
que os executados se tornassem mártires. Nesse sentido, antes do processo,
tratavam de propagar notas difamatórias que destruíam sua dignidade.
A tortura e o isolamento impostos aos réus
completavam a repressão russa. Reduzidos a quase nada, confessavam tudo o que os
inquiridores desejavam... Admitiam terem errado e conforme entregavam nomes de
outros sediciosos caíam em vergonhoso pranto.
O problema entre os
russos é que os crimes contra o regime voltavam a ocorrer e quando menos se
esperava os nomes de antigos condenados eram lembrados como mártires. Isso significa
que a degradação a que haviam sido submetidos se apagava da memória coletiva.
Neste ponto O’Brien quis explicar em quê os agentes russos de repressão
falhavam e disse que seu erro consistia em não aprofundar a confissão, que era
sempre falsa e condicionada ao suplício exacerbado.
Emendou
que o Partido não cometia o mesmo erro, pois cuidava para que as confissões proferidas
pelos acusados fossem sempre verdadeiras. E que não se duvidasse disso, pois,
no limite, o método desenvolvido possibilitava tornar verdadeira toda e
qualquer confissão... A vantagem estava no fato de impedirem que “os mortos se
levantassem contra o regime”.
A
principal lição que transmitia para Winston era a respeito da inutilidade de
imaginar que no futuro alguém pretenderia reabilitar seu nome. Ninguém jamais
ouviria falar dele! Seria “eliminado da história, transformado em gás solto na
estratosfera”. Ele devia saber disso... O Partido cuidava de apagar os
registros indesejáveis, anulando qualquer lembrança.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto