Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-parsons-e-levado.html antes
de ler esta postagem:
Por mais que o tipo esquelético se mostrasse
disposto à total submissão, o oficial não lhe deu ouvidos e ordenou mais uma
vez que fosse encaminhado à sala 101. Ao perceber que não lograria sucesso em
suas alegações e propostas, sugeriu que outro prisioneiro pudesse ir em seu
lugar. Olhou ao redor e apontou para o que parecia não ter queixo e que tinha
acabado de ser surrado.
O esquelético não teve
dúvida e disse ao oficial que deviam levar o ensanguentado. Inventou que ele
havia dito coisas comprometedoras logo após ter sido espancado. De sua parte, prometia
revelar tudo o que o criminoso inimigo do Partido dissera. Aos berros, pediu a
oportunidade de denunciar. Mentiu descaradamente ao afirmar que a teletela
teria falhado e que não captara as palavras horrendas do prisioneiro que parecia
não ter queixo. Concluiu que era este que deviam levar.
Desesperado, prendeu-se a um dos pés de ferro do banco e passou a uivar
como animal selvagem... Os guardas o agarraram e o arrastaram com dificuldade.
Para a surpresa de todos, o esquelético conseguiu resistir com uma energia
incompatível à sua péssima condição física. Um dos tiras chutou com violência a
mão que segurava o pé do bando e só assim ele se rendeu. O oficial vociferou
mais uma vez: “sala 101!”.
(...)
O tipo que tinha a cabeça
escaveirada se foi cambaleante e com a mão estraçalhada...
Passou-se um bom tempo e
Winston pensou que, se o entrevero com o esquelético tivesse ocorrido à
meia-noite, já devia ser manhã... E se tivesse ocorrido pela manhã, então já
“era de tarde”. No momento ele estava só na sala e assim permaneceria por mais
algumas horas.
O banco estreito provocava
um desconforto tremendo, principalmente para os que deviam permanecer
aquietados por um longo período, como era o seu caso. Por isso ele decidiu se
levantar e andar um pouco... Fez isso e surpreendeu-se ao notar que a teletela
não o repreendeu.
Ao caminhar conseguiu
localizar o naco de pão que o tipo que parecia não ter queixo havia atirado ao
piso. Isso o fez lembrar-se da fome que estava sentindo... Evitou olhar para o
pão, mas logo percebeu que precisava tomar água, pois sua boca estava amarga e
pastosa. Sentia-se enfraquecido e sem condições de formular raciocínios em
torno de pensamentos coerentes. Os ossos doíam-lhe e por não suportar o
incômodo havia levantado, mas assim que ficou de pé sentiu forte tontura que o
fez sentar-se novamente.
Ao esquecer-se um pouco da
debilidade física, concentrou-se na imagem de O’Brien e na promessa da lâmina
de barbear... Se lhe trouxessem algo para comer, provavelmente o objeto estaria
no meio da comida. Em alguns momentos pensou também em Júlia... É certo que
vagamente, mas a imaginou sofrendo muito mais que ele nas mãos dos repressores.
Pensou que se pudesse salvá-la dobrando a própria dor a que vinha sendo
submetido faria isso. Sim, seria capaz disso! Afirmou para si e ao mesmo tempo
que sabia que isso se relacionava mais a um posicionamento intelectual do que a
um compromisso verdadeiro.
Sabia que não sentia sinceramente a disposição de sacrificar-se por ela.
E o caso é que a condição dos prisioneiros das instalações do Ministério do
Amor era das mais delicadas... Por tudo o que vinha passando desde que fora
transferido, Winston já havia entendido que ali nenhum sentimento era possível,
apenas a dor e a “presciência da dor”. Refletiu a respeito de sua disposição de
aumentar a dor a que o submetiam para “salvar Júlia” e sobre a incerteza em
relação a, diante da própria dificuldade de se manter-se íntegro, levar a cabo
a boa vontade.
(...)
Desde o corredor ouviu o som de botas... Quando a porta se abriu foi
O’Brien quem entrou. Winston surpreendeu-se e se levantou no mesmo instante,
esquecendo-se mesmo da teletela, exclamando a respeito da “prisão” do mentor.
Irônico, O’Brien disse que havia sido pego há
muito tempo... Afastou-se para o lado permitindo a entrada de um guarda armado
com um longo porrete. O ilustre membro do Partido Interno antecipou-se a dizer
que Winston não devia se iludir, pois há muito devia saber que tinha sido
envolvido no embuste.
O rapaz não tinha condições
de articular nenhum raciocínio, pois antevia uma tremenda surra. Tentou
imaginar qual parte vulnerável de seu corpo seria estourada pelo porrete: a
cabeça, a orelha, braço cotovelo...
Não demorou. O violento golpe foi contra o cotovelo. Winston caiu de
joelhos e pôs-se a contorcer no chão. Inutilmente levou a mão ao local da
pancada enquanto uma luz amarelada tomava sua visão. Jamais imaginara que “um
só golpe pudesse produzir tamanha dor”. Assim que o clarão se dissipou,
conseguiu notar que O’Brien e o guarda corpulento o olhavam.
O guarda se ria a valer da
desesperada movimentação de Winston. Este chegara à única conclusão possível no
momento a respeito da própria dor: “que diante dela ‘não há heróis’; só podia
desejar que ela parasse; que jamais aumentasse”.
Com
o braço esquerdo inutilizado, pareceu entender de uma vez por todas que não
tinha a menor condição de desejar sofrer mais para aliviar a dor da pessoa
amada.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-interrogatorios.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto