domingo, 5 de dezembro de 2021

“1984”, de George Orwell - para não ser levado à sala 101, o escaveirado articulou denúncia contra o ensanguentado “sem queixo”; desespero de quem sabe o que o aguarda na sala infernal; Winston e sua intenção de “sofrer a dor para aliviar a condição de Júlia”; chega O’Brien acompanhado de guarda armado com porrete; fim da ilusão, golpe no cotovelo esquerdo e conclusões possíveis diante da tortura

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/12/1984-de-george-orwell-parsons-e-levado.html antes de ler esta postagem:

Por mais que o tipo esquelético se mostrasse disposto à total submissão, o oficial não lhe deu ouvidos e ordenou mais uma vez que fosse encaminhado à sala 101. Ao perceber que não lograria sucesso em suas alegações e propostas, sugeriu que outro prisioneiro pudesse ir em seu lugar. Olhou ao redor e apontou para o que parecia não ter queixo e que tinha acabado de ser surrado.
O esquelético não teve dúvida e disse ao oficial que deviam levar o ensanguentado. Inventou que ele havia dito coisas comprometedoras logo após ter sido espancado. De sua parte, prometia revelar tudo o que o criminoso inimigo do Partido dissera. Aos berros, pediu a oportunidade de denunciar. Mentiu descaradamente ao afirmar que a teletela teria falhado e que não captara as palavras horrendas do prisioneiro que parecia não ter queixo. Concluiu que era este que deviam levar.
Desesperado, prendeu-se a um dos pés de ferro do banco e passou a uivar como animal selvagem... Os guardas o agarraram e o arrastaram com dificuldade. Para a surpresa de todos, o esquelético conseguiu resistir com uma energia incompatível à sua péssima condição física. Um dos tiras chutou com violência a mão que segurava o pé do bando e só assim ele se rendeu. O oficial vociferou mais uma vez: “sala 101!”.
(...)
O tipo que tinha a cabeça escaveirada se foi cambaleante e com a mão estraçalhada...
Passou-se um bom tempo e Winston pensou que, se o entrevero com o esquelético tivesse ocorrido à meia-noite, já devia ser manhã... E se tivesse ocorrido pela manhã, então já “era de tarde”. No momento ele estava só na sala e assim permaneceria por mais algumas horas.
O banco estreito provocava um desconforto tremendo, principalmente para os que deviam permanecer aquietados por um longo período, como era o seu caso. Por isso ele decidiu se levantar e andar um pouco... Fez isso e surpreendeu-se ao notar que a teletela não o repreendeu.
Ao caminhar conseguiu localizar o naco de pão que o tipo que parecia não ter queixo havia atirado ao piso. Isso o fez lembrar-se da fome que estava sentindo... Evitou olhar para o pão, mas logo percebeu que precisava tomar água, pois sua boca estava amarga e pastosa. Sentia-se enfraquecido e sem condições de formular raciocínios em torno de pensamentos coerentes. Os ossos doíam-lhe e por não suportar o incômodo havia levantado, mas assim que ficou de pé sentiu forte tontura que o fez sentar-se novamente.
Ao esquecer-se um pouco da debilidade física, concentrou-se na imagem de O’Brien e na promessa da lâmina de barbear... Se lhe trouxessem algo para comer, provavelmente o objeto estaria no meio da comida. Em alguns momentos pensou também em Júlia... É certo que vagamente, mas a imaginou sofrendo muito mais que ele nas mãos dos repressores. Pensou que se pudesse salvá-la dobrando a própria dor a que vinha sendo submetido faria isso. Sim, seria capaz disso! Afirmou para si e ao mesmo tempo que sabia que isso se relacionava mais a um posicionamento intelectual do que a um compromisso verdadeiro.
Sabia que não sentia sinceramente a disposição de sacrificar-se por ela. E o caso é que a condição dos prisioneiros das instalações do Ministério do Amor era das mais delicadas... Por tudo o que vinha passando desde que fora transferido, Winston já havia entendido que ali nenhum sentimento era possível, apenas a dor e a “presciência da dor”. Refletiu a respeito de sua disposição de aumentar a dor a que o submetiam para “salvar Júlia” e sobre a incerteza em relação a, diante da própria dificuldade de se manter-se íntegro, levar a cabo a boa vontade.
(...)
Desde o corredor ouviu o som de botas... Quando a porta se abriu foi O’Brien quem entrou. Winston surpreendeu-se e se levantou no mesmo instante, esquecendo-se mesmo da teletela, exclamando a respeito da “prisão” do mentor.
Irônico, O’Brien disse que havia sido pego há muito tempo... Afastou-se para o lado permitindo a entrada de um guarda armado com um longo porrete. O ilustre membro do Partido Interno antecipou-se a dizer que Winston não devia se iludir, pois há muito devia saber que tinha sido envolvido no embuste.
O rapaz não tinha condições de articular nenhum raciocínio, pois antevia uma tremenda surra. Tentou imaginar qual parte vulnerável de seu corpo seria estourada pelo porrete: a cabeça, a orelha, braço cotovelo...
Não demorou. O violento golpe foi contra o cotovelo. Winston caiu de joelhos e pôs-se a contorcer no chão. Inutilmente levou a mão ao local da pancada enquanto uma luz amarelada tomava sua visão. Jamais imaginara que “um só golpe pudesse produzir tamanha dor”. Assim que o clarão se dissipou, conseguiu notar que O’Brien e o guarda corpulento o olhavam.
O guarda se ria a valer da desesperada movimentação de Winston. Este chegara à única conclusão possível no momento a respeito da própria dor: “que diante dela ‘não há heróis’; só podia desejar que ela parasse; que jamais aumentasse”.
Com o braço esquerdo inutilizado, pareceu entender de uma vez por todas que não tinha a menor condição de desejar sofrer mais para aliviar a dor da pessoa amada.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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