quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Considerações sobre “A História trágico-marítima das crianças...", de Fábio Pestana Ramos - Parte III




Fábio Pestana Ramos, historiador que escreveu A História trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI.



Sugiro que você acesse o link abaixo antes de ler esta parte III:

http://aulasprofgilberto.blogspot.com/2010/12/consideracoes-sobre-historia-tragico_14.html


O texto de ontem revelou-nos as dificuldades enfrentadas pelas crianças grumetes. Vimos que, desde que partiam para as viagens nas embarcações, estavam destinadas a sofrer demais. Passavam maus bocados no convívio com a marujada adulta e deviam cumprir as mais árduas tarefas... Alguns esperavam galgar algum posto na marinha... Mas vimos que isso era raro demais.

Todos devem saber que a alimentação era muito precária durante a travessia do Atlântico, mas para as crianças... Era tudo muito pior. O texto de ontem tratou também da outra “categoria” de viajantes infantis: os pagens, auxiliares diretos dos oficiais. Eles também estavam sujeitos a diversos abusos dos adultos.


Nesta última parte temos considerações sobre as “órfãs do rei” e as “passageiras”, que viajavam com os familiares... Ao final, depois de tratar das agruras dessas crianças, temos uma conclusão que nos remete às condições trágicas das crianças de nosso tempo.


Segue, então, a Parte III das considerações sobre “A História trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI”


Outra “categoria” de crianças embarcadas pelos portugueses eram as “órfãs do rei”. Eram retiradas dos orfanatos de Lisboa e do Porto e tinham a missão de partir para as possessões lusitanas para servirem aos fidalgos instalados em terras longínquas (Índia principalmente porque no Brasil os brancos atacavam as índias). Eram embarcadas meninas com idades inferiores aos 16 anos. Ocorreu uma verdadeira caça a essas crianças em Portugal, muitas delas consideradas órfãs apenas por terem o pai falecido. É claro que a simples presença de meninas nas embarcações gerava uma perseguição animalesca dos marujos que as estupravam. As meninas contavam com alguma proteção dos padres porque eram destinadas ao casamento e deviam chegar virgens ao destino, mas passavam pelas mesmas precárias situações dos demais tripulantes e, entregues ao ambiente insalubre morriam sem chegar a conhecer o futuro marido.


Algumas crianças eram embarcadas como “passageiras”, eram em número muito pequeno e há vários relatos que informam a presença de crianças de colo. Essas crianças também estavam sujeitas a todo tipo de desastre e, frágeis como são as criancinhas de dois a quatro anos, dificilmente escapavam ilesas de uma viagem completa ou de algum acidente no percurso. As crianças passageiras, apesar de acompanhadas dos pais, também estavam sujeitas às difíceis condições e amolestações. Não bastassem essas desgraças, caiam no mar e, como eram parentes de membros da nobreza e dos mais importantes membros da tripulação, até acontecia de tentarem o salvamento, mas eram tentativas sem a menor possibilidade de sucesso.


Grande problema se constituía para todos, quando piratas capturavam uma embarcação. Todos sofriam, mas as crianças eram as maiores vítimas. Os piratas não poupavam a vida dos adultos pobres. Já os nobres eram poupados, pois podiam ser trocados por algum resgate. As crianças eram escravizadas na própria embarcação pirata, já que eram consideradas mais controláveis que os adultos, ou vendidas aos bordéis no mercado pirata das Antilhas ou da Ásia. Nos casos de naufrágio as crianças sempre levavam a pior. Primeiro porque não tinham como resistir ao afundamento da embarcação; segundo porque sempre que era necessário desfazer-se de algum peso para manter um bote salva-vidas com os religiosos e os nobres da embarcação a salvo, escolhia-se lançar para o afogamento as pobres e indefesas crianças. No caso de naufrágio os capitães sempre procuravam salvar em primeiro lugar a própria pele, a dos mais ricos e a dos religiosos (que nada faziam em prol das “herdeiras do reinos dos céus”). No caso de chegarem a atingir a terra firme depois de um naufrágio, o que aguardava adultos e crianças era um longo martírio, “um sofrimento intenso, marcado pela fome, pelo medo e pelas inúmeras dificuldades” (página 44).


O texto é muito rico em citações que ilustram essa situação desesperadora, o caso mais interessante é sobre o naufrágio do galeão São João (1552) e da luta do capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e de seus familiares (páginas 46 a 48).


O texto termina com uma conclusão que nos leva a refletir sobre a situação das crianças mais desfavorecidas de nossa sociedade que sofrem vários tipos de exploração. São trabalhadoras em carvoarias, sem terra, sem teto, sem escola, exploradas no tráfico de drogas e prostituídas nas esquinas das grandes cidades. O universo adulto daqueles “heróicos tempos” da expansão marítima portuguesa não permitia considerar o resgate da inocência das crianças vistas como “adultos em corpos infantis”, isso nos permite qualificar a história das crianças daqueles tempos como uma “história trágico-marítima”. As sobreviventes de toda essa loucura nunca mais teriam condições de recuperar a inocência perdida. No “hoje” assistimos à viagem irresponsável nas “embarcações” em que nossas pobres crianças também são, muitas vezes, recrutadas à força.


Um abraço,

Prof.Gilberto

Leia: História das crianças no Brasil. Editora Contexto.

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