terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Considerações sobre “A História trágico-marítima das crianças...", de Fábio Pestana Ramos - Parte II




Mary Del Priore,
historiadora que organizou o História das crianças no Brasil.




Sugiro que você acesse o link abaixo antes de ler esta parte II:


A leitura de ontem deixou claro que as crianças eram enviadas ao Brasil na condição de grumetes, de pagens, como órfãs do rei para se casarem com colonos, ou ainda como passageiras acompanhadas da família que procurava iniciar uma nova vida no Brasil... Vimos que não havia preocupações dos adultos com as crianças... Elas possuíam um status bem próximo da condição dos escravizados... A realidade dos grumetes (os garotos ajudantes nas naus) era a pior possível, já que sofriam todo tipo de exploração dos adultos durante as viagens.

Segue, então, a Parte II das considerações sobre “A História trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI”

Apesar da consciência que todos tinham sobre o risco de morte em certas atividades, os grumetes sempre eram encarregados de desempenhá-las. Há vários relatos de época que confirmam os abusos em relação às crianças e, como as viagens eram sempre muito longas, a exploração atingia níveis selvagens. Os grumetes não tinham alojamentos garantidos nas embarcações, já que era preciso garantir muito espaço nelas para os lucrativos carregamentos. As crianças, abandonadas à própria sorte, permaneciam a céu aberto, vítimas do sol quente, das tempestades e da friagem, acabavam sofrendo de pneumonias e queimaduras.

Os grumetes não tinham como “negociar” no “mercado negro” (que sempre existiu nas viagens marítimas daqueles tempos) uma alimentação razoável. A ração era restrita e péssima, os alimentos eram fétidos e podres, e, como eram proibidos de se alimentar mais que as “três rações diárias” permitidas, viam-se na obrigação de capturar ratos e baratas para complementar a “dieta” (pássaros que devoravam cadáveres dos marujos também eram capturados para esse fim). Também por isso adoeciam e morriam.

A falta de mulheres entre os embarcados gerava grande assédio sexual às crianças. Havia entre os marujos muitos criminosos que tiveram a pena de morte (por decapitação ou enforcamento) comutada “pelo serviço marítimo”. Esses representavam sempre uma grande ameaça aos “miúdos” e a pedofilia homoerótica era muito comum. Os meninos nada podiam contra os brutamontes. E os religiosos que, talvez pudessem intervir, até toleravam as atitudes “dignas de condenação à fogueira”. Dificilmente os grumetes delatavam os estupros porque tinham medo ou vergonha.

Apesar das evidentes condições adversas dos grumetes a oportunidade de embarcar nas viagens podia trazer alguns conhecimentos náuticos muito importantes para uma carreira na marinha lusitana. É claro que, como não tinham nenhuma alfabetização, não tinham condições também de galgar aos mais altos postos, que exigiam a leitura de manuais para a formação de pilotos e capitães. Na página 29 do texto é apresentada a citação do caso de Antônio da Costa Lemos (uma exceção que chegou à condição de capitão e cabo de navios). Há vários relatos sobre situações de risco e de naufrágio em que os grumetes (alguns menores de 12 anos) se destacaram como exímios marinheiros. De qualquer maneira as difíceis experiências nas embarcações podiam servir, no raro caso de sobrevivência, para introduzi-los na marinha.

Os pagens eram encontrados em menor número que os grumetes nas embarcações. Somados aos grumetes deviam representar cerca de 22% dos tripulantes. Aos pagens eram determinadas as funções mais leves (se comparadas às funções dos grumetes): serviam à mesa dos oficiais e preparavam-lhes os camarotes, providenciavam-lhes todo o conforto possível. Como desempenhavam suas atividades junto aos mais importantes membros das expedições contavam com alguma proteção e eventuais gratificações, como uma ração melhor e soldos superiores aos dos grumetes. Os castigos impostos aos pagens não podiam ser comparados aos que os grumetes sofriam. Apesar da proteção que conseguiam também sofriam abusos sexuais (dos oficiais). Revoltados, e com a consciência muito conturbada, exerciam sobre os grumetes uma exploração extra, pois hes impunham autoridade e exageravam nos seus desmandos em relação aos mais desfavorecidos. A maioria dos pagens provinha dos setores médios urbanos de Portugal, as famílias consideravam a atividade nas embarcações uma possibilidade de ascensão social. Vários pagens foram filhos de oficiais e de seus parentes mais próximos. Notamos, então, que esses pequenos exerciam espécies de “cargos de confiança”.

Para amanhã estou prometendo uma Parte III. Também está bem interessante... Não perca!
Um abraço,
Prof.Gilberto
Leia: História das crianças no Brasil. Editora Contexto.

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