Ainda sobre o romance epistolar “Júlia ou A nova Heloísa”, de Rousseau, o “Journal desSavantsadmiúa” publicou que o mesmo possui passagens cansativas e que, portanto, não podia ser elogiado em sua totalidade. Todavia o mesmo periódico destacou que apenas os que suportavam fortes emoções estavam aptos à leitura que “devasta a alma e provoca as mais amargas lágrimas”.
De fato, Rousseau recebeu muitas cartas de leitores (nobres, religiosos, militares e a gente comum) que confirmam as conclusões do “Journal desSavantsadmiúa” anteriormente expostas... Os registros desses leitores descreviam sentimentos ardentes, emoções e convulsões provocadas pelo “Júlia ou A nova Heloísa”...
De tal modo o livro aproximou-os dos sofrimentos da jovem Júlia que um deles admitiu ao autor que gritou e “uivou como animal” quando chegou à parte em que ela morre.
(...)
A respeito da leitura dos romances epistolares do
século XVIII, e mais especificamente da correspondência propiciada pelo romance
de Rousseau, Lynn Hunt destaca comentário de um estudioso do século passado que
sustenta que o público se envolvia com “paixão, delírio, espasmos e soluços”, muito
mais do que pelo simples prazer de ler.
De
1761 até o final do século XVIII foram publicadas dez edições de “Júlia ou A nova
Heloísa”. Neste mesmo período foram mais de cem edições em francês! Evidentemente
isso é indicativo do interesse do público que, a partir do livro, passou a experimentar
“uma nova forma de empatia”.
Hunt lembra que Rousseau contribuiu significativamente
para a circulação do termo “direitos humanos”... Mas ressalta que não é disso
que “Júlia ou A nova Heloísa” trata. Como podemos depreender, o romance envolve
“paixão, amor e virtude”. Apesar disso, o livro proporcionou a empatia em
relação a personagens para “além das fronteiras de classe, sexo e nação”.
É
preciso destacar que esse tipo de sentimento só ocorria entre os que conviviam
nos círculos mais restritos, como a família, os parentes ou os membros da
paróquia. Esses eram os “iguais costumeiros em geral”. Assim, durante o período
mencionado, a leitura dos romances epistolares propiciou a ampliação das
fronteiras da empatia.
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Para
termos uma ideia da limitada visão que se tinha sobre a quem se devotava
empatia, a autora cita uma história contada por Alexis de Tocqueville. O
escritor e pensador político ouvira do secretário de Voltaire que madame de
Châtelet costumava se despir diante de seus criados sem o menor pudor porque simplesmente
não levava em conta “que os camareiros fossem homens”, pois não era dessa forma
que ela os via.
Mais uma vez devemos destacar a importância dos romances
epistolares como o “Júlia” de Rousseau. Graças a eles, milhares de leitores tiveram
condições de “se identificar com personagens comuns, que lhes eram por
definição pessoalmente desconhecidos”. A narrativa bem elaborada levou as pessoas
a nutrirem sentimentos pelas heroínas (e pelos heróis) das cartas. Chama a
atenção o fato de os protagonistas serem de realidades sociais diversas... Júlia,
por exemplo, era figura típica da “classe média”. Já a protagonista de “Pâmela”,
romance de Samuel Richardson, era uma simples criada enganada pelo sr. B., o inescrupuloso
patrão sedutor.
Os romances levavam os leitores a entenderem que todas as
pessoas, independentemente de sua condição social, são semelhantes por conta
dos sentimentos mais íntimos que nutrem. A autora destaca ainda que muitos dos
livros evidenciavam o desejo das sofridas personagens por autonomia. Podemos
dizer que os romances alteravam a “percepção psicológica” dos leitores. Eles
passavam a experimentar e conhecer um senso interior de empatia pelos demais. O
senso de igualdade tornou-se comum.
Lynn Hunt destaca que os livros de Richardson, “Pâmela”
(1740) e “Clarissa” (1747/8); e o “Júlia” de Rousseau (1761) foram publicados
antes do período que viu surgir o conceito dos “direitos do homem”.
Com isso não se quer afirmar que a empatia surgiu ou foi
inventada durante o século XVIII... Esse sentimento é universal, já que é
próprio da “biologia do cérebro”. Assim, há uma “base biológica” que nos permite
“compreender a subjetividade” dos demais e que nos torna capazes de entender o
quanto “suas experiências interiores são semelhantes às nossas”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/09/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_13.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto