segunda-feira, 23 de setembro de 2019

“A Invenção dos Direitos Humanos – uma história”, de Lynn Hunt – os homens leitores, empatia em relação à Júlia e aversão aos personagens masculinos do livro de Rousseau; as cartas como produto da individualidade, autonomia e integralidade das pessoas comuns; Horace Walpole e Henry Fielding, críticos de Richardson; fragmento de panfleto de Sarah Fielding

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/09/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_71.html antes de ler esta postagem:

Engana-se quem pensa que apenas as mulheres se identificavam com as protagonistas dos livros de Rousseau e Richardson... Cartas endereçadas a Rousseau indicam que até militares se sensibilizavam e nutriam empatia por Júlia. Louis François, oficial das armas aposentado, escreveu a ele manifestando que seu livro o deixara “louco pela Júlia”, e acrescentou que a morte da heroína havia lhe arrancado lágrimas, as “lágrimas mais deliciosas” e que: “essa leitura teve um efeito tão poderoso (...) que acredito que teria morrido de bom grado durante aquele supremo momento”.
Os homens que liam os romances epistolares do século XVIII se identificavam psicologicamente com as protagonistas... Charles-Louis-Fleury Panckoucke admitiu ao mesmo Rousseau que sentira no próprio coração “a pureza das emoções de Júlia”. Ainda em relação a essa obra, vale ressaltar que o público masculino não se identificava com os personagens representativos do gênero socialmente dominante (os homens), assim, Saint-Preux (o amante a que Júlia renuncia), Wolmar (o esposo) e o barão D’Étanges (pai da heroína) são rejeitados pelos leitores, que se sentem mais afeitos à frágil Júlia em sua luta por uma existência de mais virtudes.
(...)
Não há dúvida de que as cartas dos romances possibilitaram um entendimento mais apurado acerca da interioridade das personagens... Os leitores reconheciam a individualidade daqueles seres humanos e se tornavam sensíveis em relação aos seus sofrimentos. Todavia cabe acrescentar que, a título de exemplo, o fato de a Pâmela de Richardson escrever cartas nas quais expõe seus sentimentos mais íntimos a torna “modelo de individualidade e autonomia orgulhosa”.
Então, ao se reconhecer nas personagens dos romances, o público leitor tomava consciência da própria capacidade e se conscientizava de que os demais indivíduos possuem a mesma autonomia.

(...)

Mais de uma vez se afirmou que os romances epistolares não provocaram as mesmas reações elogiosas em todos os que se dispuseram a analisá-los... O conde escritor Horace Walpole, por exemplo, teceu críticas aos escritos de Richardson ao afirmar que não passavam de “lamentações tediosas”, “quadros da vida elevada como seriam concebidos por um livreiro, e romances como seriam espiritualizados por um professor metodista”...
Um dos grandes rivais de Richardson foi Henry Fielding, que escreveu “Uma apologia à vida da sra. Shamela Andrews, na qual as muitas falsidades e deturpações de um livro chamado ‘Pâmela’ são desmascaradas e refutadas”, um dos primeiros artigos de agressividade satírica contra o consagrado romance epistolar.
Ao contrário de Henry, sua irmã, a também escritora Sarah Fielding, tornou-se amiga de Samuel Richardson e publicou anonimamente um panfleto de mais de cinquenta páginas em defesa de sua obra... Dando voz a personagens fictícios, ela sentencia que o método utilizado (as cartas epistolares) levava os leitores a um conhecimento mais íntimo e familiar da Clarissa, como se a reconhecessem desde a infância...
Em outro trecho do panfleto de Sarah Fielding, lê-se as considerações da também fictícia srta. Gibson que (como se estivesse dirigindo ao próprio autor) admite:

                   “Muito verdadeiro, senhor, é o seu comentário de que uma história contada dessa maneira só pode se desenrolar lentamente, de que os personagens só podem ser vistos por aqueles que prestam uma atenção precisa ao conjunto; entretanto, o autor ganha uma vantagem escrevendo no tempo presente, como ele próprio o chama, e na primeira pessoa: o fato de que as suas pinceladas penetram imediatamente no coração, e sentimos todas as desgraças que ele pinta; não só choramos por, mas com Clarissa, e a acompanhamos passo a passo, por todas as suas desgraças”.

Leia: A Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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