Durante a primeira metade do século XVIII, a palavra “tortura” (pelo menos em francês) relacionava-se aos problemas dos escritores na produção textual, notadamente nas ocasiões de maior complexidade em que necessitavam de encaixar expressões mais adequadas aos propósitos de sua redação... O livro apresenta citação de Pierre de Marivaux (1724) que retrata o anteriormente exposto. Esse jornalista e romancista fazia referências sobre “torturar a mente para extrair reflexões”.
Ao que tudo indica, foi somente depois que Montesquieu publicou “Espírito das Leis” (1748) que a “tortura”, suplício dos corpos por autorização judicial a fim de se obter confissões e delações, passou a ser mais debatida e questionada pelos que se importavam com a temática dos direitos. Para o referido filósofo francês, “tantas pessoas inteligentes e tantos homens de gênio escreveram contra essa prática” que ele mesmo não se sentia à vontade para ainda mais criticá-la.
Há um trecho em que Montesquieu ressalta que poderia até levar em consideração a tortura judicial enquanto praticada por regimes de exceção:
“Eu até poderia dizer que ela fosse apropriada para o governo despótico, no qual tudo que inspira medo contribui para o vigor do governo; ia dizer que os escravos entre os gregos e os romanos... Mas escuto a voz da natureza gritando contra mim”.
O trecho acima enfatiza que a tortura judicial poderia ser resultado de governos autoritários que impõem às sociedades um regime do medo. Cita as experiências da Grécia e da Roma da Antiguidade, que tiveram no escravismo a base de sua organização. Por fim Montesquieu salienta que “a voz da natureza” grita contra esses descabimentos.
Novamente vemos a ideia de “autoevidência” dos direitos... Depois de Montesquieu, Voltaire, Beccaria e vários outros intelectuais se colocaram abertamente contra a tortura judicial que supliciava corpos e mentes de processados e de testemunhas.
A década de 1780 foi marcada por discussões intensas em torno dos direitos e da definição de doutrinas. Neste momento, a tortura e outras “formas bárbaras de punição corporal” haviam sido totalmente refutadas pelos teóricos.
(...)
As pessoas passaram a se sensibilizar
mais com as agressões às individualidades físicas e psicológicas que outros
sofriam... Esse dado passou a contar nas análises dos que refletiam sobre a
autoridade política e sua legitimidade enquanto garantidora dos direitos.
Thomas Jefferson anunciava que o
Criador dotou os homens de direitos... Mas quando os homens realizam pactos e
definem governo, este será tanto melhor ou pior de acordo com os acertos ou
erros dos que o compõem. A vontade de Deus não conta aí. Os homens reunidos em
comunidade chegam ao consenso e estabelecem o governo. Eles o instituem para
que os direitos sejam assegurados! O poder de governar reside no “consentimento
dos governados”.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão segue os
mesmos princípios. Nela se lê que o “objetivo de toda associação política é a
preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”, e ainda que o
“princípio de toda soberania reside na nação”.
(...)
De acordo com Lynn Hunt, os estudiosos (das teorias, dos
contratos e da autoridade política constituída pelo consenso dos que pretendem
que a instituição assegure os direitos básicos) “têm prestado pouca atenção à
visão dos corpos e das individualidades que a tornou possível” (a autoridade
política).
Ela cita o cientista político Benedict Anderson e seus
argumentos a respeito dos jornais e romances enquanto criadores de uma
“comunidade imaginada” que permite o florescimento do nacionalismo.
A “empatia imaginada” (a ideia de que os outros são iguais
e como nós) fundamenta os direitos humanos. A leitura de romances, veremos isso,
contribuiu para que mais e mais pessoas passassem a ter noções das dores que
personagens fragilizados sofrem silenciosamente. A reação (empatia) propiciou
concepções de comunidades em que a autonomia e a individualidade de cada um
sejam respeitadas.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/08/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_31.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto