sábado, 20 de abril de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – sobre o francês “libertino de Praga” e sua ética; um “comunismo não ortodoxo” centrado na liberdade e igualdade de condições entre homens e mulheres

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/04/mayombe-de-pepetela-ondina-e-sem-medo.html antes de ler esta postagem:

Ondina aguardava a decisão da direção desde Brazzaville sobre o seu caso (a confusão marcada pelo adultério com o André, que já havia sido encaminhado para o processo). Como sabemos, Sem Medo ocupava provisoriamente o posto de responsável em Dolisie substituindo o André.
Estamos neste ponto em que Sem Medo e Ondina curtiam a noite na varanda do bureau após a refeição da noite... Conversavam sobre suas existências, e mais especificamente sobre a do guerrilheiro.
(...)
Ondina havia perguntado se o camarada deixava de satisfazer desejos sexuais por causa de sua moral pessoal...
Sem Medo respondeu que não estavam falando de temas diferentes... Quando havia dito que imaginava que ela também vivenciasse uma experiência de liberdade nas relações, não fazia referência à sociedade profundamente marcada pelo machismo, mas às convicções que ele acreditava trazer em seu íntimo.
Sem Medo acrescentou que as pessoas são levadas a bloquear os desejos quando ficam problematizando as prováveis consequências de seus atos e se fincam numa auto reprovação.
A conversa tomou este rumo... Também pode ser que os dois estivessem percebendo o caráter mais intimista e não se importaram em aprofundá-lo. Sem Medo perguntou se Ondina o imaginava um “tarado sexual”. Ela respondeu que não, mas salientou que bem podia ser que se tratasse de um “libertino.
(...)
Sem Medo passou a fazer referências sobre sua vivência na Europa. Disse que ele mesmo nada tinha de “libertino”, mas conhecera alguns... Contou que durante umas férias em Praga conheceu um que podia ser considerado o “legítimo libertino”. O tipo não deixava escapar nenhuma mulher que lhe despertasse o interesse. Nenhuma mulher escapava de suas abordagens... Alguns o viam como um típico Don Juan! Não podia dizer sobre o seu paradeiro... Provavelmente continuava com a mesma impetuosidade. Comparado àquele tipo, Sem Medo podia garantir que estava bem longe de ser libertino. Até porque sua formação havia sido marcada por inúmeros tabus.
Ele não pôde negar que em certo momento da vida pensou que o mais correto a fazer seria abandonar por completo o cotidiano conservador e aproveitar mais da vida. Mas aconteceu que escrúpulos de consciência passaram a atormentá-lo, então decidiu desabafar com o amigo de Praga e a constatação mais importante a que chegou foi a de que não pertenciam à mesma geração.
O tipo era francês... Um comunista que não podia ser enquadrado entre os ortodoxos... Apesar disso, Sem Medo pensava que ele estava bem de acordo com as definições que trazia consigo. Ondina quis saber se a ideia que estava por trás não era a de que “as mulheres são coletivas”. Ele protestou dizendo que ela estava querendo usar argumentos católicos anticomunistas.
Em defesa do “libertino”, Sem Medo disse que ele defendia que as mulheres eram livres para aceitá-lo ou recusá-lo e, ao mesmo tempo, sentia-se livre para cortejar ou não outras mulheres.
A questão era que os relacionamentos do “libertino de Praga” exigiam responsabilidade dele e das que se envolviam com ele... E principalmente a responsabilidade emocional, porque cada um devia suportar “per si” as consequências da relação. Então Sem Medo sustentou que o tipo era comunista não porque considerasse as mulheres coletivas, mas porque as via tão livres quanto os homens.
Ondina observou que havia muitos que não eram comunistas que pensavam exatamente da mesma forma.
(...)
Sem Medo respondeu que estava claro que o procedimento mais libertário e até despojado do francês não bastava para torná-lo comunista, mas quem podia dizer que ele não estava a caminho?
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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