Ondina aguardava a decisão da direção desde Brazzaville sobre o seu caso (a confusão marcada pelo adultério com o André, que já havia sido encaminhado para o processo). Como sabemos, Sem Medo ocupava provisoriamente o posto de responsável em Dolisie substituindo o André.
Estamos neste ponto em que Sem Medo e Ondina curtiam a noite na varanda do bureau após a refeição da noite... Conversavam sobre suas existências, e mais especificamente sobre a do guerrilheiro.
(...)
Ondina havia perguntado se o camarada deixava de
satisfazer desejos sexuais por causa de sua moral pessoal...
Sem Medo respondeu que não estavam falando de temas
diferentes... Quando havia dito que imaginava que ela também vivenciasse uma
experiência de liberdade nas relações, não fazia referência à sociedade
profundamente marcada pelo machismo, mas às convicções que ele acreditava trazer
em seu íntimo.
Sem
Medo acrescentou que as pessoas são levadas a bloquear os desejos quando ficam
problematizando as prováveis consequências de seus atos e se fincam numa auto
reprovação.
A conversa tomou este rumo... Também pode ser que os
dois estivessem percebendo o caráter mais intimista e não se importaram em
aprofundá-lo. Sem Medo perguntou se Ondina o imaginava um “tarado sexual”. Ela
respondeu que não, mas salientou que bem podia ser que se tratasse de um “libertino.
(...)
Sem
Medo passou a fazer referências sobre sua vivência na Europa. Disse que ele
mesmo nada tinha de “libertino”, mas conhecera alguns... Contou que durante
umas férias em Praga conheceu um que podia ser considerado o “legítimo
libertino”. O tipo não deixava escapar nenhuma mulher que lhe despertasse o
interesse. Nenhuma mulher escapava de suas abordagens... Alguns o viam como um
típico Don Juan! Não podia dizer sobre o seu paradeiro... Provavelmente
continuava com a mesma impetuosidade. Comparado àquele tipo, Sem Medo podia
garantir que estava bem longe de ser libertino. Até porque sua formação havia
sido marcada por inúmeros tabus.
Ele
não pôde negar que em certo momento da vida pensou que o mais correto a fazer
seria abandonar por completo o cotidiano conservador e aproveitar mais da vida.
Mas aconteceu que escrúpulos de consciência passaram a atormentá-lo, então decidiu
desabafar com o amigo de Praga e a constatação mais importante a que chegou foi
a de que não pertenciam à mesma geração.
O tipo era francês... Um comunista que não podia ser
enquadrado entre os ortodoxos... Apesar disso, Sem Medo pensava que ele estava
bem de acordo com as definições que trazia consigo. Ondina quis saber se a
ideia que estava por trás não era a de que “as mulheres são coletivas”. Ele
protestou dizendo que ela estava querendo usar argumentos católicos
anticomunistas.
Em defesa do “libertino”, Sem Medo disse que ele defendia
que as mulheres eram livres para aceitá-lo ou recusá-lo e, ao mesmo tempo,
sentia-se livre para cortejar ou não outras mulheres.
A questão era que os relacionamentos do “libertino de
Praga” exigiam responsabilidade dele e das que se envolviam com ele... E principalmente
a responsabilidade emocional, porque cada um devia suportar “per si” as
consequências da relação. Então Sem Medo sustentou que o tipo era comunista não
porque considerasse as mulheres coletivas, mas porque as via tão livres quanto
os homens.
Ondina
observou que havia muitos que não eram comunistas que pensavam exatamente da
mesma forma.
(...)
Sem Medo respondeu que estava claro que o procedimento
mais libertário e até despojado do francês não bastava para torná-lo comunista,
mas quem podia dizer que ele não estava a caminho?
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto