Sem Medo caminhou apressadamente na direção do bar. Além da atendente, não havia mais ninguém no ambiente. Ocupou uma mesa e pediu a cerveja gelada.
A bebida foi consumida num instante e o comandante sequer utilizou o copo. Pediu outras duas cervejas, mas dessa vez não atacou o gargalo da garrafa. Enquanto segurava o copo notou que sua mão ardia ainda como consequência da bofetada que dera no Comissário... Seu pensamento ocupou-se da crítica ao amor e a estupidez que contamina os apaixonados.
A atendente pediu-lhe que pagasse pelos três cascos... Enquanto entregava o dinheiro, pensou que ela estava desconfiada de que ele se tratava de um beberrão que não paga pelas bebidas que consome por aí. Voltou a refletir sobre o Comissário e sua imaturidade... Lembrou que desde o tempo em que era seminarista procurara resolver seus casos e intrigas de amor sozinho. Não confiaria nos demais, sempre prontos a entregar os companheiros e suas escapadas ao padre no segredo do confessionário.
O Comissário havia proferido ameaças... Mas dizer que passaria a resolver sozinho os próprios problemas não significava muito. E não é isso mesmo o que se espera de qualquer pessoa madura?
Neste momento, já meio embriagado, Sem Medo não conseguiu conter uma gargalhada escandalosa. A mulher, que cuidava dos afazeres da copa, viu que lágrimas corriam pelo rosto do freguês. Sem que pudesse entender a motivação do outro, continuou a lavação dos copos.
(...)
Sem Medo tinha disparado a rir também de si mesmo... É
que no final das contas concluía que o camarada Comissário estava se
libertando. Ele mesmo não o havia entendido no momento de fúria e desabafo e
por isso lhe dera a bofetada. Suas ofensas “ofuscaram” o sentido do que estava
ocorrendo de mais importante. Ele, que sempre dizia que as palavras são
relativas, sentiu-se tão ofendido pelo ataque verbal do jovem que não conseguiu
fazer a avaliação correta do que estava se processando.
A
gargalhada, então, foi de certo alívio... Bem mais calmo, deixou o bar dando um
leve e ousado tapa no traseiro da atendente.
(...)
De
volta ao bureau, topou com Ondina, que parecia bem assustada. Enquanto a
tranquilizava, ficou sabendo que o Comissário a importunara.
Ondina não conseguia emendar as frases, mas deixou escapar
que em sua opinião o João endoidecera de vez. Disse também que ele fizera um
duro discurso contra ela e o próprio comandante. Para ele, os dois estavam
muito enganados a seu respeito, pois pensavam que ele era ingênuo e até abusaram
de sua imaturidade... Esbravejara que não o destruiriam, pois estava habilitado
a seguir sem ela e sem qualquer tutor... Não a desejava mais e para provar que
dizia a verdade lhe rasgou a roupa e demonstrou-se completamente
desinteressado.
A respeito de Sem Medo, o Comissário havia dito a Ondina
que ele o queria solitário... Mas o comandante não demonstrou nenhum espanto e
deu a entender que previa aquele desfecho. Disse que havia conversado com o
Comissário e por isso sabia o essencial da discussão que não presenciara.
O João quis demonstrar que havia se libertado... Ondina
explicou ao Sem Medo que em nenhum momento retrucou, inclusive quando ele disse
que mostraria a todos que era tão bom guerrilheiro quanto o seu chefe imediato.
Provaria que as pessoas se enganavam quando imaginavam que o comandante vivia
cercado por um feitiço que o fazia mais corajoso que os demais.
Sem
Medo não demonstrou nenhuma contrariedade e até disse que o outro estava com a
razão. Ondina emendou que para o João, no final das contas, todos saberiam que
Sem Medo não era excepcional... Este concordou mais uma vez.
Ainda sobre o discurso do Comissário em seu desabafo à ex-noiva,
Ondina revelou que ele atacou ainda mais o Sem Medo quando disse que este
enganava a todos quando partia para a ação apenas depois de avaliar as
possibilidades de sair dela sem qualquer risco. Típico dos vaidosas que ainda
mais querem a adulação dos outros. Neste ponto Sem Medo respondeu que o João
exagerou.
(...)
Certamente Ondina se espantou com a postura calma de
Sem Medo ao ouvir todos as ofensas do Comissário. Então ela contou que ele dissera
que mostraria que doravante partiria para ações de alto risco e sem qualquer embuste.
Sem
Medo respondeu que não via problema nisso... Destacou apenas que esperava que
ele não fizesse nenhuma asneira. Disse isso enquanto pensava que o Comissário
não era diferente dos demais que buscam a autoafirmação e prestígio no ataque e
oposição aos outros.
Ondina disse ainda que o Comissário se dirigiria à Base no
Mayombe para se tornar o responsável, pois sabia que Sem Medo ocuparia o lugar
do André em Dolisie.
Mais uma vez, Sem Medo não demonstrou qualquer contrariedade
e, em vez disso, sentenciou que aquela era “a ordem natural das coisas”.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto