sexta-feira, 19 de abril de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – Ondina e Sem Medo na varanda; uma conversa sobre as expectativas futuras do guerrilheiro; de contradições existenciais e da visão libertária; de tabus sociais, moral individual e anseios por uma existência plena

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/04/mayombe-de-pepetela-fim-do-relato-do.html antes de ler esta postagem:

Ondina respondeu que via em Sem Medo um militar... Ele disse que também via a si mesmo dessa forma e acrescentou que nisso residia um problema. É que quando a guerra chegasse ao fim seria o momento de abandonar as armas.
É claro que um exército regular se constituiria, mas este não o atraía... Seria o caso de se perguntar o que faria após o triunfo da Revolução. Sem Medo não sabia e, todavia, tampouco se preocupava com essa questão.
(...)
Ele perguntou à Ondina sobre quais eram as expectativas dela... Ela respondeu que no momento conversavam a respeito dele e emendou que não o via sequer como marinheiro. Disse que não o imaginava vivendo do sustento de uma pensão e passando o tempo a contar histórias do tempo da guerra.
Sem Medo a ouviu e sentenciou que se considerava um tipo sem futuro... Mais uma vez garantiu que não se importava com essa constatação. Ondina o interrompeu e sugeriu que deviam haver momentos em que ele se via traçando planos...
Ele respondeu que às vezes pensava em “coisas impossíveis” para o próprio futuro... Talvez passasse a aceitar as ideias dos demais... Talvez chegasse um momento em que ninguém mais se importaria com a vida alheia ou o fato de “andarem nus pelas ruas” e o riso seria completamente livre de preconceitos... Também as relações de amor deixariam de ser marcadas por tabus... Os casais se formariam livremente e ninguém exigiria “fidelidade eterna”...
Ondina demonstrou surpresa e quis saber se ele pensava mesmo daquela maneira libertária... Sem Medo confirmou. Neste momento ela o fez notar um bêbado que passava aos tropeços pela rua, então disse que também gostaria que as posturas de cada um fossem de menos patrulhamento e de opressão. Depois salientou que se topasse com aquele bêbado pelo caminho, assim que passasse por ele, iria rir de sua condição.
Sem Medo destacou que provavelmente agiria do mesmo modo, e destacou que falhavam quando diziam que pretendiam uma realidade transformada, mas prosseguiam sem se transformarem interiormente. E isso se aplicava também às cotidianas atitudes de reprimir as vontades sempre que se notavam desejosos de mais liberdade. Nessas ocasiões acabavam se curvando a desculpas reacionárias, e é como se também deixassem de ser lúcidos.
(...)
Sem Medo resolveu concluir o raciocínio dizendo que pessoas como ele e a própria Ondina se tornavam alienados ao não se libertarem das doutrinações de tempos antigos: Deus, os padres, os pais, os professores e tudo o que inculcavam, levando-os a uma existência marcada por temores. Podia dizer que se tornavam piores do que escravos porque, apesar de terem quebrado “certos grilhões”, mantinham-se presos a eles para se sentirem seguros.
Essas palavras levaram Ondina a entender que o camarada estava amargo e abatido... Ela manifestou sua opinião e ele principiou uma explicação sobre as ocasiões em que se sentia dessa maneira. De repente interrompeu o que dizia. Ondina quis que Sem Medo continuasse a frase interrompida, mas ele não quis prosseguir com o tema.
(...)
Ela o fitou. Ele não desviou os olhos e permaneceu sem falar... Ela baixou a cabeça e então ele pôs-se a contemplá-la por completo. Enquanto fez isso, refletiu sobre sua beleza e entendeu que ela “tinha qualquer coisa de menina inacabada sendo mulher”. A pouca luz que emanava do candeeiro chegava a ela e definia uma bela imagem.
Ondina quebrou o silêncio sentenciando que ele podia ser mais livre, pois se tratava de um homem e nada o impedia de conquistar a mulher que quisesse.
Sem Medo até quis dizer que ela experimentava igual condição, mas ela antecipou-se deixando claro que a sociedade é muito rígida com as mulheres. Ele esclareceu que não estava se referindo à sociedade, mas à “moral individual”. Ela se pôs a rir e quis saber se ele tinha uma “moral individual”.
Os dois pareciam não falar da mesma moral, então Ondina perguntou se ele deixava de satisfazer desejos sexuais por causa da moral que trazia consigo.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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