Ondina respondeu que via em Sem Medo um militar... Ele disse que também via a si mesmo dessa forma e acrescentou que nisso residia um problema. É que quando a guerra chegasse ao fim seria o momento de abandonar as armas.
É claro que um exército regular se constituiria, mas este não o atraía... Seria o caso de se perguntar o que faria após o triunfo da Revolução. Sem Medo não sabia e, todavia, tampouco se preocupava com essa questão.
(...)
Ele perguntou à Ondina sobre quais eram as expectativas
dela... Ela respondeu que no momento conversavam a respeito dele e emendou que
não o via sequer como marinheiro. Disse que não o imaginava vivendo do sustento
de uma pensão e passando o tempo a contar histórias do tempo da guerra.
Sem Medo a ouviu e sentenciou que se considerava um
tipo sem futuro... Mais uma vez garantiu que não se importava com essa
constatação. Ondina o interrompeu e sugeriu que deviam haver momentos em que
ele se via traçando planos...
Ele
respondeu que às vezes pensava em “coisas impossíveis” para o próprio futuro...
Talvez passasse a aceitar as ideias dos demais... Talvez chegasse um momento em
que ninguém mais se importaria com a vida alheia ou o fato de “andarem nus
pelas ruas” e o riso seria completamente livre de preconceitos... Também as
relações de amor deixariam de ser marcadas por tabus... Os casais se formariam
livremente e ninguém exigiria “fidelidade eterna”...
Ondina demonstrou surpresa e quis saber se ele pensava
mesmo daquela maneira libertária... Sem Medo confirmou. Neste momento ela o fez
notar um bêbado que passava aos tropeços pela rua, então disse que também
gostaria que as posturas de cada um fossem de menos patrulhamento e de
opressão. Depois salientou que se topasse com aquele bêbado pelo caminho, assim
que passasse por ele, iria rir de sua condição.
Sem
Medo destacou que provavelmente agiria do mesmo modo, e destacou que falhavam
quando diziam que pretendiam uma realidade transformada, mas prosseguiam sem se
transformarem interiormente. E isso se aplicava também às cotidianas atitudes
de reprimir as vontades sempre que se notavam desejosos de mais liberdade.
Nessas ocasiões acabavam se curvando a desculpas reacionárias, e é como se
também deixassem de ser lúcidos.
(...)
Sem
Medo resolveu concluir o raciocínio dizendo que pessoas como ele e a própria
Ondina se tornavam alienados ao não se libertarem das doutrinações de tempos
antigos: Deus, os padres, os pais, os professores e tudo o que inculcavam,
levando-os a uma existência marcada por temores. Podia dizer que se tornavam
piores do que escravos porque, apesar de terem quebrado “certos grilhões”,
mantinham-se presos a eles para se sentirem seguros.
Essas palavras levaram Ondina a entender que o camarada
estava amargo e abatido... Ela manifestou sua opinião e ele principiou uma explicação
sobre as ocasiões em que se sentia dessa maneira. De repente interrompeu o que
dizia. Ondina quis que Sem Medo continuasse a frase interrompida, mas ele não
quis prosseguir com o tema.
(...)
Ela o fitou. Ele não desviou os olhos e permaneceu sem
falar... Ela baixou a cabeça e então ele pôs-se a contemplá-la por completo.
Enquanto fez isso, refletiu sobre sua beleza e entendeu que ela “tinha qualquer
coisa de menina inacabada sendo mulher”. A pouca luz que emanava do candeeiro chegava
a ela e definia uma bela imagem.
Ondina quebrou o silêncio sentenciando que ele podia ser
mais livre, pois se tratava de um homem e nada o impedia de conquistar a mulher
que quisesse.
Sem
Medo até quis dizer que ela experimentava igual condição, mas ela antecipou-se
deixando claro que a sociedade é muito rígida com as mulheres. Ele esclareceu
que não estava se referindo à sociedade, mas à “moral individual”. Ela se pôs a
rir e quis saber se ele tinha uma “moral individual”.
Os dois pareciam não falar da mesma moral, então Ondina
perguntou se ele deixava de satisfazer desejos sexuais por causa da moral que
trazia consigo.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto