Sobre o francês libertino que conheceu em Praga, Sem Medo ao menos podia garantir que o tipo havia sido o mais livre que conhecera em toda a vida... Podia mesmo dizer que o invejava! Todavia logo entendeu que jamais seria como ele. E isso é apenas uma questão de se reconhecer as próprias limitações...
(...)
Ondina
quis saber se o outro colocava os desejos particulares acima da Revolução...
Sem Medo disse que neste ponto residia um de seus principais dramas, mas o tipo
tinha certeza de que entre uma tarefa revolucionária urgente e a possibilidade de
se entreter com uma mulher interessante, se decidiria sempre pela Revolução.
Ela o interrompeu dizendo que, desse modo, não podia considerá-lo livre.
Sem Medo concordou e acrescentou que “ninguém pode ser
livre quando tem uma Revolução a fazer”. Por que, então, podia considerar o
francês o tipo mais livre que conhecera? Porque somente as “razões sociais ou
políticas” o levavam a abrir mão de seus desejos pessoais.
“Razões de moral individual” não o desviavam das
realizações anteriormente expostas. Muitos são os que se “mantêm na linha” e
não traem a companheira por medo de também serem traídos... Há vários como esses
que “têm consciência de que a liberdade é igual para todos”, mas não há como
compará-los ao “libertino de Praga”.
(...)
Sem
Medo deixou claro que apenas a Revolução podia por uma trava no “libertino de
Praga”. “Razões de moral individual” não o abalavam.
Ondina quis saber qual seria o posicionamento
individual do camarada tendo como ponto de partida os princípios de seu
conhecido e o desafio que a ética do outro parecia provocar... Ele respondeu
simplesmente que não se casaria. Ela observou que sua resposta mostrava uma
fuga ao que havia lhe sido perguntado.
Sem
Medo concordou e emendou que não suportaria um relacionamento em que tivesse de
lidar com novos sofrimentos. Ele não entrou em detalhes com Ondina, mas é claro
que ainda lhe era dolorida a traição de Leli. Ao mesmo tempo entendia que
qualquer mulher que se relacionasse com ele devia ser livre para se envolver
com quem bem entendesse.
Em
síntese, para ele, o casamento o forçaria a ser fiel para que, dessa maneira,
obtivesse reciprocidade da companheira... A isso poderia chamar de “prisão
hipócrita”.
Essas constatações chegavam para que concluísse que, de
fato, estava longe de ser parecido com o colega de Praga.
(...)
Voltando a tratar especificamente daquele tipo, Sem Medo
disse que ele tinha por companheira uma bela alemã do leste chamada Karin... Ao
se referir aos olhos da mulher do “libertino”, Sem Medo os chamou de “fulgurações
violetas” quando atingidos pela luz... Ondina observou que o camarada possuía
veia poética... Ele assentiu e sustentou que havia mulheres que o tocavam a tal
ponto que se sensibilizava poeticamente.
Ondina ficou curiosa por saber se Sem Medo chegou a ter um
caso amoroso com a bela Karin.
Ele
acendeu outro cigarro e a figura da bela mulher pareceu surgir-lhe em
pensamento... Depois de algum tempo disse que vivia a fugir dela... Acrescentou
que, como se podia notar mais uma vez, ele nada tinha em comum com o amigo
francês. E acontecia mesmo de ela provocá-lo com muitas carícias... Mas não
havia modo de o conquistar.
Sem Medo não se dobrava aos encantos da rapariga unicamente
porque se tratava da mulher de um camarada. Este, por sua vez, nem se importava
se os dois chegassem a ter um caso. Até acharia bom se o tivessem!
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/04/mayombe-de-pepetela-uma-conversa-sobre.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto