domingo, 7 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – topando peregrinos de distantes localidades; a mais nobre das portas; o douto Gamaliel abre caminho para Topsius e Teodorico; Eliézer de Silo se apresenta como médico residente do templo; uma receita para os males intestinais

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/01/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_5.html antes de ler esta postagem:

Pouco antes da sexta hora judaica (meio-dia), Teodorico e Topsius prosseguiam em meio à multidão no rumo do “átrio de Israel”.
Gente das mais diversas paragens misturavam-se... Assim, as rudes vestes dos pastores da Idumeia roçavam os mantos de gregos de brancas faces bem escanhoadas... Os tipos vindos desde a Babilônia chamavam a atenção com as barbas escondidas em “sacos azuis” presos às suas mitras por uma corrente de prata... Não menos chamativos eram os gauleses com sua cabeleira ruiva e longos bigodes... Via-se que conversavam animadamente enquanto saboreavam os doces limões sírios.
Evidentemente os romanos se faziam presentes em meio à ruidosa multidão... Muitos vestiam togas e passavam com ares de dignidade. Outros tantos eram os que vinham da Dácia e da Mísia com as pernas “enfaixadas em ligaduras de feltro”...
Teodorico pensou na estranheza que os seus próprios modos podiam causar às pessoas... Diferentemente de todos, ele calçava as botas propícias às cavalgadas... E foi com espanto que de repente percebeu-se atrás de um “sacerdote de Moloque” com seu esplendoroso casaco de púrpura... Este tipo se destacava no meio de um grupo de mercadores de Serepta enquanto debochava e demonstrava grande desprezo pelo templo desprovido de imagens, e que mais se parecia com  uma grande feira fenícia.
(...)
Aos poucos Topsius e Teodorico se aproximaram da porta conhecida como “a Bela”... A partir dela acessava-se o “átrio sagrado de Israel”.
A porta era tão imponente que a definição que mais se aproxima de suas características é aquela que se dispensam aos “arcos de triunfo”... Quatorze degraus de mármore da Numídia davam acesso a ela... Os batentes e as chapas de prata que os revestiam davam-lhe aspecto robusto... Os dois umbrais lembravam grossas palmas e davam sustentação a “uma torre, redonda e branca, guarnecida de escudos tomados aos inimigos de Judá”.
Entretanto, à frente da porta havia uma coluna que chamava a atenção por seus traços severos e por sustentar uma placa negra com dizeres grafados em ouro... Qualquer um que chegasse ao local tomava conhecimento das advertências (em grego, latim, aramaico e em caldaico) a respeito da proibição da entrada de estrangeiros... A interdição era taxativa, pois punia com a morte aqueles que a desrespeitassem.
(...)
É claro que Topsius e Teodorico não ousaram transgredir a regra rigorosa...
Mas aconteceu que Gamaliel, o doutor da lei conhecido de Topsius e muito prestigiado no Sanedrim, vinha chegando... Com ele estava um outro que trazia enorme mitra de lã, certamente um sinal de sua dignidade e autoridade entre os pares. Este se chamava Eliézer de Silo.
Os dois estrangeiros os saudaram respeitosamente. Gamaliel respondeu que eram bem-vindos e que aquela era “a melhor hora para receber a benção do Senhor”. Depois completou que o Senhor dissera: "saí das vossas habitações, vinde a mim com as primícias dos vossos frutos, eu vos abençoarei em todas as obras das vossas mãos..."
Tranquilizou-os garantindo que, como por milagre, pertenceriam momentaneamente a Israel... Assim sendo, ele e o bom e sábio Eliézer os conduziriam “à morada do Eterno”.
Na sequência, Gamaliel entregou-lhes duas espigas de milho das que trazia junto ao peito. Depois o caminho foi aberto... Topsius e Teodorico seguiram as autoridades judaicas.
(...)
No caminho, Eliézer de Silo pôs-se ao lado de Teodorico e quis saber se ele vinha de longínqua pátria e se por caminhos perigosos... De modo vago, o português respondeu que chegavam de Jericó. O homem da bela mitra na cabeça perguntou sobre a colheita do bálsamo... Teodorico afiançou que havia sido “rica” e acrescentou que o Eterno devia ser louvado, pois no corrente ano a cidade estava “abarrotadinha” de bálsamos.
Eliézer pareceu gostar do que ouviu... Explicou que era um dos médicos que viviam no templo... E como que para justificar-se, acrescentou que sacerdotes e sacrificadores contraíam muitos “dissabores intestinais” porque pisavam “descalços as lajes frias dos adros”.
E como se estivesse completando sua apresentação, disse ainda que, por causa desse ofício, ele e os outros médicos eram chamados de “doutores da tripa”...
Esse gracejo inesperado “na austera morada do Eterno” fez Teodorico deixar escapar um sorriso... E também encheu-o de confiança para se permitir uma “consulta”.
O rapaz lembrou-se dos problemas intestinais que tivera em Jericó por conta de seu exagerado consumo de melões da Síria... Então perguntou ao doutor especialista se em seu caso o bismuto era indicado como tratamento...
Quase que em segredo, Eliézer disse que ele deveria tomar “goma de Alexandria, açafrão de jardim, (uma) cebola da Pérsia e vinho negro de Emaús”... Tudo isso devia ser misturado e cozido... Depois o composto tinha de ser esfriado em recipiente de prata... Na sequência seria necessário encontrar uma encruzilhada onde se pudesse aguardar o nascer do sol...
A receita não foi concluída porque logo chegaram ao “Pátio das Mulheres”... Respeitosamente, Eliézer silenciou, abriu os braços e dirigiu o olhar para o piso.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas