Não foi possível aproximar-se mais... Uma corda esticada entre dois mastros fincados no chão detinha os mais curiosos e exaltados.
Topsius e Teodorico arranjaram-se perto de uma antiga oliveira de cujos ramos pendiam vários escudos de legionários e um manto vermelho.
O Raposo decidiu voltar o olhar para as cruzes encravadas na rocha... Então viu que na mais alta “o Rabi agonizava”.
(...)
Em
seus registros, Teodorico destaca a impressão do momento... Sua consciência de
cristão do século XIX talvez esperasse vislumbrar a imagem de um corpo em
marfim ou prata...
No sonho repleto de “sensações
concretas”, viu um corpo que o encheu de espanto e terror, pois “arquejava,
vivo, quente, atado e pregado a um madeiro, com um pano velho na cinta” e com “um
travessão passado entre as pernas”...
O
sangue que manchava a madeira era o mesmo que havia saído das mãos cravadas com
violência... Os pés arroxeados encontravam-se amarrados em grossa corda.
Torcidos e certamente doloridos, eles “quase tocavam o chão”.
O Rabi ainda
movimentava lentamente a cabeça de um a outro ombro... Seus cabelos estavam
emplastados de sangue e suor... Os olhos pareciam se apagar aos poucos, como se
“a luz e esperança da terra” estivessem deixando esse mundo.
(...)
Um centurião sem manto
mantinha-se de braços cruzados diante da cruz do Rabi. Eventualmente dirigia olhares
severos aos tipos rumorosos e cheio de gracejos que haviam chegado desde o
templo.
Topsius apontou para
um sujeito parado junto à corda de isolamento... Ele tinha a face triste e descorada,
encoberta por longas mechas que chegavam ao peito. Aquele era José de Ramata. Via-se
que estava impaciente, pois abria, consultava e enrolava um pergaminho diversas
vezes enquanto falava ao ouvido de um escravo e conferia a posição do sol.
O alemão deu a
entender que pretendia conversar com o membro do Sanedrim, mas teve início
certo tumulto entre os que permaneciam aglomerados... Um deles, que parecia
embriagado de vinho, apontou para a cruz e vociferou ao Rabi que Ele se dizia
forte e que destruiria “o templo e suas muralhas”... Na sequência perguntou por
que ao menos não quebrava o madeiro que O prendia.
Os tipos ao redor gargalharam e se animaram a proferir mais deboches... Um
outro bateu a mão contra o próprio peito, saudou o crucificado chamando-O “Herdeiro
de Davi” e príncipe... Com escárnio, quis saber o que Ele achava do “trono” que
estava ocupando. Um velho esquálido aproveitou a deixa e O provocou dizendo que,
já que era Filho de Deus, podia chamar o pai para salvá-Lo...
Os vendilhões achavam graça de todas as provocações... Alguns não se continham,
juntavam uma porção de terra nas mãos, cuspiam e moldavam bolotas para
atirá-las no Rabi. E tanto fizeram que uma de suas pedras atingiu pesadamente a
cruz... Nesse momento, o centurião puxou a espada e se aproximou do grupo. A lâmina
feriu sem maior gravidade os dedos de uns tantos, que se afastaram ao mesmo
tempo em que murmuravam injúrias contra o soldado.
(...)
Topsius entendeu que a ocasião era propícia para
se aproximar de José de Ramata... Mas este não entendeu da mesma maneira, fechou
ainda mais o semblante e retirou-se bruscamente.
O alemão permaneceu
com Teodorico junto à oliveira ressecada... Dali passaram a observar os outros
dois condenados, que despertavam “do primeiro desmaio”.
Um deles tinha os olhos arregalados... Seu aspecto lembrava o de uma
fera lesionada e à beira da morte... Sem ninguém a ampará-lo, urrava tal como “um
lobo ferido que uiva e morre num brejo”.
O outro era “delgado
e louro”... Não esboçava movimento e tampouco gemia... À sua frente estava uma
mulher pálida e em andrajos... Ela se arriscava ao passar o joelho sobre a
corda de isolamento e ao elevar nos braços uma criança nua ao supliciado implorando
roucamente que a olhasse “uma vez mais”. Tudo em vão, pois o martirizado sequer
movia as pálpebras.
Enternecido,
um negro que recolhia as ferramentas utilizadas durante a execução dos
sentenciados se aproximou da mulher... Deu a entender que a empurraria para
afastá-la da área. Então ela emudeceu e apertou o filho contra o magro peito.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/01/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_19.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto