sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – as pessoas comuns e seus afazeres normais entre a “oitava e a nona hora judaica”; a curiosidade de uns e outros; o velho da lira e a criança que o acompanha reaparecem; Topsius pede uma canção

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/01/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_70.html antes de ler esta postagem:

A situação parecia definida...
Alguns soldados puseram-se a desdobrar as túnicas dos três sentenciados... Outros cuidavam de limpar o suor que escorria desde a cabeça e ingeriam posca (uma mistura de vinagre com água e, eventualmente, com vinhos baratos) de um recipiente de ferro que passava de mão a mão.
As pessoas comuns prosseguiam em seus afazeres sem se darem conta do ocorrido... Do alto da colina, Teodorico pôde observar os que colhiam nos campos e hortos... Ao longe, um velho conduzia “suas vacas para o lado da porta de Gená”...
Houve momento em que um grupo de mulheres passou carregando lenha e cantarolando pelo caminho... Depois foi a vez de um cavaleiro em seu distinto manto branco... Alguns que por ali passavam, ou que vinham desde os pomares de Garebe, notavam as cruzes e paravam para observá-las ao longe sem maior interesse... Outros subiam a colina e se espantavam com os dizeres em grego e latim logo acima da cruz onde pregaram o Rabi... Era com espanto que exclamavam “Rei dos judeus!” e logo depois perguntavam quem podia ser.
(...)
Dois moços saduceus bem trajados e exibindo brincos de pérolas chegaram a interpelar o centurião... Indignados, quiseram saber por que o pretor mandara escrever aquilo... Depois perguntaram se era Caio Tibério que estava pregado na cruz... Por fim eles mesmos concluíram que o pretor tivera a intenção de ofender e provocar Israel, mas sua atitude servira apenas para ultrajar o próprio imperador.
O militar não deu a menor importância aos rapazes... Em vez disso, prosseguiu sua conversa com dois dos legionários que manuseavam barras de ferro.
Com os dois saduceus estava uma jovem romana morena... Ela trazia fitas avermelhadas enfeitando os cabelos azulados. Enquanto aspirava essências num frasco, contemplou o Rabi... Teodorico imaginou que ela talvez lamentasse o sucedido ao moço, “rei vencido, rei bárbaro”, morto “no poste dos escravos”.
(...)
A “oitava hora judaica” se aproximava, já que a posição do sol indicava que logo desceria “para o mar por sobre as palmeiras da Betânia”.
Cansado, Teodorico recolheu-se junto a Topsius numa pedra. De onde estavam podiam contemplar o verdejante Garebe. Avistava-se também as muralhas do bairro novo de Bezeta e, nos locais mais próximos às tinturarias, os variais onde estendiam panos vermelhos e azuis. Adiante havia uma forja e o lume de braseiro que acusavam o ofício do ferreiro... Noutro ponto crianças se divertiam ao redor de uma piscina.
A imponente torre hípica podia ser avistada... Sua sombra se estendia pelo vale de Hinom... Naquele instante, soldados se posicionavam com seus arcos e flechas apontadas para abutres que planavam os ares ao redor.
Depois eram as árvores e mais distante estavam os terraços do palácio de Herodes.
(...)
Uma profunda tristeza se apossara do Teodorico do sonho... Pensou no Egito, no acampamento que haviam levantado e na vela que deixara a queimar na tenda.
De repente avistou aquele velho que haviam visto na estrada de Jopé... Aquele mesmo que caminhava amparado por uma criança e que levava uma lira à cintura (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/01/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_9.html)... O homem trazia o semblante ainda mais triste... Talvez a dureza da caminhada também tivesse tornado sua coroa de louro menos vistosa.
Topsius chamou o velho. Este se aproximou com dificuldade, então o alemão perguntou-lhe se “trazia algum canto novo” desde as “doces ilhas do mar”.
O homem respondeu que nos mais antigos cantos da Grécia “a mocidade sorria para sempre”... Na sequência ajeitou-se para passar os dedos às cordas da lira. A criança que o seguia pegou uma flauta de cana para acompanhá-lo também na música.
O velho rapsodo soltou sua voz trêmula e cantou como se estivesse numa distante praia da Jônia. Cantou os deuses, sua beleza e os heróis de seu povo. E seu canto narrou as conquistas de Atenas nas armas e em todos os ramos da produção humana... Tratou de Zeus, da beleza das raças e suas cidades...
Teodorico registrou que a canção do velho salientava a divindade de Fado, entidade forte que não tinha forma, mas, mesmo sem ter se tornado popular, estava acima de todas as outras.
(...)
Foi como um “grito de libertação”...
O velho interrompeu sua cantiga no instante mesmo em que se ouviu um grito desde o alto da colina... Ele baixou a cabeça sobre a lira... A criança também silenciou a flauta e desviou o olhar curioso para as cruzes.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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