De fato, Gade apareceu desde o fundo do horto de José de Ramata...
O essênio corria pela rua ladeada por murta e rosas. Trazia um embrulho de linho e um cesto com mirra e ervas aromáticas arranjados num bastão. Topsius passou pela cancela e perguntou-lhe a respeito do Rabi. Gade deixou a trouxa e o cesto com um escravo, recuperou-se da apressada carreira e disse que o Rabi havia sofrido muito quando bateram os pregos em suas mãos e no momento em que elevaram a cruz.
Emocionado, o essênio prosseguiu dizendo que Ele repelira o “primeiro o vinho de misericórdia”, entregue aos condenados para que perdessem a consciência... Admitiu que, pelo visto, o gesto do Rabi era uma demonstração de Seu firme propósito de “entrar com a alma clara na morte”... O certo é que José de Ramata e Nicodemo não o abandonaram, permaneceram diante da cruz e falaram a respeito das promessas que Ele fizera certa noite em que se reuniram em Betânia. Depois disso Ele bebeu do vasilhame oferecido pela mulher de Rosmofim.
Gade passou essas informações... Não entrou em maiores detalhes porque tinha outros compromissos. Por fim olhou fixamente para Tospius e deu a entender que após a ceia podiam se encontrar no terraço da casa de Gamaliel. Depois o essênio virou-se e retomou a rua ladeada por murta e rosas...
(...)
Topsius e Teodorico
afastaram-se da estrada para Jopé... Acessaram um atalho com vegetação
espinhosa que espetavam suas túnicas. Nesse trecho, o alemão explicou do que se
tratava a “bebida da misericórdia”. E foi assim que Teodorico ficou sabendo que
era um “vinho forte de Tarses, com suco de papoulas e especiarias, fornecido
por uma confraria de mulheres devotas”. Elas faziam a caridade de diminuir o
sofrimento dos condenados à sofrida morte na cruz.
Logo
chegaram a um monte rochoso e de pobre solo, propício às urzes que cresciam com
abundância... Avistaram um aglomerado de pessoas em torno das três cruzes. Não
foi difícil notar a presença de considerável número de legionários, pois seus
elmos reluziam conforme se movimentavam de um lado para outro.
Num primeiro momento,
Teodorico deu a entender que não se aproximaria e parou junto a uma pequena
elevação... Mas decidiu seguir Topsius que não vacilou na decisão de subir a
colina. Para o Raposo, o sábio alemão agia com a “serenidade de quem considera
a morte uma purificadora libertação das formas imperfeitas”.
A subida
possibilitava a vista do Vale de Hinom e sua secura... Nada de sombras naquele
depósito de “ossos, carcaças e cinzas”. O caminho de pó, onde bem podia correr
um córrego, estava tomado por lagartos que se afastavam conforme os dois estrangeiros
avançavam.
(...)
Aquele trecho dava
numa ruína do que havia sido um pobre casebre... Notavam-se duas amendoeiras de
lamentável aspecto que pareciam entristecer ainda mais o ambiente preenchido
pelo cantar de cigarras. Numa diminuta sombra acomodavam-se quatro pobres mulheres.
Suas túnicas eram verdadeiros trapos...
Seu lamento era dos
que mergulham em profundo luto. Uma delas fincara posição junto a um tronco e
gemia copiosamente... Outra deitara numa pedra e desmanchava-se em lágrimas sem
se dar conta de que os cabelos se arrastavam pelo chão empoeirado... As outras
duas pareciam delirar enquanto se martirizavam cobrindo os próprios rostos com
terra ao mesmo tempo em que se estapeavam... Levantavam os braços aos céus e
assim via-se que sangravam de vários arranhões.
Em
seu desespero, clamavam terem perdido todo encanto de viver... Choramingavam
terem perdido o “tesouro e o sol” de suas vidas.
O quadro fazia-se ainda mais sinistro devido aos uivos de um cão perdido
em meio às ruínas.
(...)
Apavorado, Teodorico puxou Topsius pela capa...
Retomaram a marcha
para o alto do morro... Alcançaram um aglomerado de pessoas falantes. Entre
elas contavam-se alguns artesãos de Garebe, servidores do templo, uns tantos
vendilhões e alguns sacerdotes que viviam de esmolas. Estes últimos pareciam
assíduos frequentadores daquele ambiente, já que eram conhecidos por atender
consultas de necromancia.
Dois
cambistas se aproximaram de Topsius. Eles traziam as tradicionais moedas de
ouro penduradas nas orelhas e murmuravam “bênçãos servis”...
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/01/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_70.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto