sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – Gade engajado nas providências a respeito do resgate do corpo do Rabi; sinistra subida do outeiro da morte; quatro desesperadas mulheres; servidores do templo, artesãos, cambistas, legionários, miseráveis sacerdotes e vendilhões na aglomeração

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/01/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_9.html antes de ler esta postagem:

De fato, Gade apareceu desde o fundo do horto de José de Ramata...
O essênio corria pela rua ladeada por murta e rosas. Trazia um embrulho de linho e um cesto com mirra e ervas aromáticas arranjados num bastão. Topsius passou pela cancela e perguntou-lhe a respeito do Rabi. Gade deixou a trouxa e o cesto com um escravo, recuperou-se da apressada carreira e disse que o Rabi havia sofrido muito quando bateram os pregos em suas mãos e no momento em que elevaram a cruz.
Emocionado, o essênio prosseguiu dizendo que Ele repelira o “primeiro o vinho de misericórdia”, entregue aos condenados para que perdessem a consciência... Admitiu que, pelo visto, o gesto do Rabi era uma demonstração de Seu firme propósito de “entrar com a alma clara na morte”... O certo é que José de Ramata e Nicodemo não o abandonaram, permaneceram diante da cruz e falaram a respeito das promessas que Ele fizera certa noite em que se reuniram em Betânia. Depois disso Ele bebeu do vasilhame oferecido pela mulher de Rosmofim.
Gade passou essas informações... Não entrou em maiores detalhes porque tinha outros compromissos. Por fim olhou fixamente para Tospius e deu a entender que após a ceia podiam se encontrar no terraço da casa de Gamaliel. Depois o essênio virou-se e retomou a rua ladeada por murta e rosas...
(...)
Topsius e Teodorico afastaram-se da estrada para Jopé... Acessaram um atalho com vegetação espinhosa que espetavam suas túnicas. Nesse trecho, o alemão explicou do que se tratava a “bebida da misericórdia”. E foi assim que Teodorico ficou sabendo que era um “vinho forte de Tarses, com suco de papoulas e especiarias, fornecido por uma confraria de mulheres devotas”. Elas faziam a caridade de diminuir o sofrimento dos condenados à sofrida morte na cruz.
Logo chegaram a um monte rochoso e de pobre solo, propício às urzes que cresciam com abundância... Avistaram um aglomerado de pessoas em torno das três cruzes. Não foi difícil notar a presença de considerável número de legionários, pois seus elmos reluziam conforme se movimentavam de um lado para outro.
Num primeiro momento, Teodorico deu a entender que não se aproximaria e parou junto a uma pequena elevação... Mas decidiu seguir Topsius que não vacilou na decisão de subir a colina. Para o Raposo, o sábio alemão agia com a “serenidade de quem considera a morte uma purificadora libertação das formas imperfeitas”.
A subida possibilitava a vista do Vale de Hinom e sua secura... Nada de sombras naquele depósito de “ossos, carcaças e cinzas”. O caminho de pó, onde bem podia correr um córrego, estava tomado por lagartos que se afastavam conforme os dois estrangeiros avançavam.
(...)
Aquele trecho dava numa ruína do que havia sido um pobre casebre... Notavam-se duas amendoeiras de lamentável aspecto que pareciam entristecer ainda mais o ambiente preenchido pelo cantar de cigarras. Numa diminuta sombra acomodavam-se quatro pobres mulheres. Suas túnicas eram verdadeiros trapos...
Seu lamento era dos que mergulham em profundo luto. Uma delas fincara posição junto a um tronco e gemia copiosamente... Outra deitara numa pedra e desmanchava-se em lágrimas sem se dar conta de que os cabelos se arrastavam pelo chão empoeirado... As outras duas pareciam delirar enquanto se martirizavam cobrindo os próprios rostos com terra ao mesmo tempo em que se estapeavam... Levantavam os braços aos céus e assim via-se que sangravam de vários arranhões.
Em seu desespero, clamavam terem perdido todo encanto de viver... Choramingavam terem perdido o “tesouro e o sol” de suas vidas.
O quadro fazia-se ainda mais sinistro devido aos uivos de um cão perdido em meio às ruínas.
(...)
Apavorado, Teodorico puxou Topsius pela capa...
Retomaram a marcha para o alto do morro... Alcançaram um aglomerado de pessoas falantes. Entre elas contavam-se alguns artesãos de Garebe, servidores do templo, uns tantos vendilhões e alguns sacerdotes que viviam de esmolas. Estes últimos pareciam assíduos frequentadores daquele ambiente, já que eram conhecidos por atender consultas de necromancia.
Dois cambistas se aproximaram de Topsius. Eles traziam as tradicionais moedas de ouro penduradas nas orelhas e murmuravam “bênçãos servis”...
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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