sábado, 13 de janeiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – o rapsodo conta a sua triste história; aproxima-se a “santa hora da Páscoa” e nenhum corpo morto deve permanecer suspenso; crurifrágio romano e pressões dos fariseus; José de Ramata apresenta-se para recolher o corpo do Rabi

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/01/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_19.html antes de ler esta postagem:

Por mais um tempo o velho tocador de lira permaneceu no sítio onde se acomodaram Topsius e Teodorico...
O alemão pediu-lhe que contasse a própria história... Desencantado, o homem explicou que vinha de Samnos... Houve tempo em que tocava seu instrumento junto ao templo de Hércules em sagradas ocasiões... Todavia as pessoas abandonaram aos poucos o culto aos heróis. Passaram a prestar homenagem a divindades estrangeiras, como era o caso da “boa deusa da Síria”.
O velho prosseguiu dizendo que acompanhou mercadores a Tiberíade. Naquela localidade sofreu muito porque os habitantes não tinham o menor respeito pelos mais velhos. Então decidiu que não mais se fixaria... Percorreu as longas estradas, fazendo parada nos pontos onde havia quartéis e acampamentos de soldados. Esses o ouviam.
Perambulou pelas aldeias da Samaria e ofereceu o seu ofício de músico aos que trabalhavam na produção de sucos, vinhos e azeites... Também tocou em funerais bárbaros... Assim sobreviveu até chegar a Jerusalém.
O rapsodo explicou que desejava retornar a Mileto, que era a sua pátria. Destacou que não se sentia bem em Jerusalém e citou o grande templo e o Deus “sem forma que detestava as gentes”.
De sua terra recordava o rio Meandro, as esculturas das divindades, o templo de Febo Didimeu, para onde seus primeiros cachos de cabelos foram oferecidos... Tantas foram as tristes recordações narradas que o homem se pôs a chorar.
Teodorico apiedou-se do pobre estrangeiro também “perdido na dura cidade dos judeus”. Então entregou-lhe sua última moeda de prata... O velho desceu a colina com o auxílio da criança que o acompanhava.
(...)
Logo que o tocador de lira se retirou, iniciou-se um tumulto no alto do outeiro, onde estavam cravadas as cruzes.
Topsius e Teodorico se dirigiram para lá... Encontraram o pessoal do templo muito agitado... A maioria levantava os braços e apontava para o sol, que lembrava um escudo dourado em sua descida na posição do Mar de Tiro.
As pessoas exigiam que o centurião retirasse os condenados das cruzes, pois logo seria a “santa hora da Páscoa”. De modo algum o Sabá podia ser desrespeitado. Nenhum corpo morto podia permanecer no alto de cruzes!
Alguns mais exaltados exigiam que o militar recorresse ao “crurifrágio romano”, quebrando os ossos das pernas do condenado que ainda estivesse vivo. Era para isso que serviam as pesadas barras de ferro manipuladas pelos soldados! Depois era só lançar os corpos ao despenhadeiro de Hinom... Os abutres fariam o resto.
Os protestos ainda mais recrudesciam na medida em que o centurião se mostrava indiferente. Alguém vociferou que estava pronto para seguir a Acra para comunicar a situação ao pretor...
(...)
A hora avançava e quanto mais o sol deixava o Hebron, mais as pessoas ousavam em seus protestos... Mas o militar manteve-se sereno... Observou o alto da torre Mariana. Pareceu mesmo aguardar certa movimentação dos soldados... Os escudos reluziram à luz do poente... E foi então que ele manejou sua espada lentamente, fazendo um aceno. Na sequência, dois dos legionários pegaram barras de ferro e se dirigiram às cruzes.
Teodorico encheu-se de pavor e até agarrou a capa do companheiro alemão... Porém, o centurião deteve-se diante da cruz onde pregaram Jesus. Ele parecia adormecido... Não dava para ver o Seu rosto, que estava tombado “para trás molemente por sobre um dos braços da cruz”... Seus pés pendiam para o chão... O soldado fez as observações que julgava pertinentes e perguntou em alta voz ao aglomerado de pessoas quem ali havia reivindicado aquele corpo.
Imediatamente ouviu-se uma voz a admitir o que havia sido indagado... E como se estivesse a explicar o motivo de seu requerimento, emendou que “O havia amado em vida”. Obviamente tratava-se de José de Ramata, que levantou o pergaminho acima da corda de isolamento para que o soldado pudesse conferir.
O escravo que o acompanhava deixou o tecido de linho e seguiu para o casebre em ruínas, onde estavam as quatro mulheres em pranto... Alguns fariseus presentes entenderam no mesmo instante e murmuraram a respeito da iniciativa de José de Ramata, prestigiado membro do Sanedrim... Evidentemente a consideraram absurda... Então o Rabi sedicioso e herege teria o corpo perfumado e a honra de um funeral! Era demais!
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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